A Lista

 

Tablo reader up chevron

Prelúdio

O ar estava quente e abafado apesar de a noite ir alta. Junto ao cais persistia apenas o resquício de uma brisa salgada que desenrolava das ondas. Escutava-se um tlim-tlonc ocasional causado pelo toque leve das argolas de uma bandeira contra uma barraca de metal. Pelo porto ecoava o som da maré ruminando na areia, som este que encobria os risos da noite, dando às ruas uma aparência calma.

— Desvia para lá esse cu, também quero ver!

Não muito longe do cais, escondida pelas sombras no final da Rua dos Perceves, existia uma casa velha, de madeira apodrecida pelos anos de vento furioso, e já meia inclinada em direção ao cais. As dobradiças das portas rangiam de cada vez que alguém entrava, corroídas pelo sal de décadas, e o soalho gemia e abatia-se a cada passo. Como ainda se conseguia manter de pé ninguém sabia. E, apesar de todos os seus defeitos, todas as noites a casa tornava-se no local mais popular da pequena cidade portuária, ganhava vida.

— Vocês são doidos. Vamos embora antes que alguém nos veja!

— Se continuares a dar à língua podes ter a certeza de que nos apanham.

— Então não vês que a Palito tem uma reputação a defender? É uma senhora toda fina e cheia de pulgas.

O nome Palito não era em vão, era alta para a idade e demasiado magra e lisa para uma rapariga prestes a tornar-se mulher. O vestido descarnado parecia vesti-la em vez do contrário.

A casa era a única na rua, e talvez na cidade, que mantinha as luzes acesas e que fazia ecoar música pelas paredes àquela hora da noite.

Uma onda mais intensa de risos explodiu de dentro da casa velha.

— O que foi? O que foi? – Questionou Palito pondo-se em pontas e dando saltinhos para tentar ver entre os dois rapazes. Agarrou os calções do da direita, forçando-o a descer da pilha de paletes de madeira. – Deixa-me ver, Grilo!

— Agora já não queres ir ‘pra casa, hein? – Replicou o rapaz que ganhara a alcunha por ser o mais baixo dos três.

Grilo puxou os calções para cima mas não se moveu do seu lugar. Palito bufou em aborrecimento, lançando os cabelos castanhos que lhe tinham caído sobre a cara, até que o outro rapaz lhe deu a mão.

— Anda daí. – Ajudou-a a subir, permitindo que ficasse apertada entre os dois.

A janela das traseiras era mais alta do que qualquer um deles, e a inclinação da parede para dentro só dificultava a tarefa de espreitar. Mesmo sendo a mais alta, custava a Palito ver para lá dela, conseguindo manter o olhar apenas até meio do buraco enquanto os outros eram obrigados a ver pouco acima da borda enferrujada.

— Não consigo ver nada.

— Boca-Seca vai buscar mais paletes. – Murmurou Grilo, pondo-se também ele em bicos de pés e agarrando-se ao peitoril.

Boca-Seca era um rapaz do interior que viera para a cidade sem nunca ter visto o mar. Da primeira vez que lhe pode tocar atirou-se de cabeça e engoliu a água pensando que era bebível. Quando emergiu tossindo e fazendo cara de nojo as crianças riram-se dele e perguntaram-lhe se tinha a boca seca, em tom de gozo. Daí a alcunha.

Agora com um lugar livre, Palito esticou-se o máximo que pôde até agarrar o varão enferrujado sob a janela do andar superior, e içou-se até ficar com os pés sobre o peitoril e a janela. Tinha uma vista perfeita.

— O que vês? – Boca-seca murmurou a pergunta ao chegar do beco com mais uma par de paletes.

Grupos de homens grandes e pequenos, magros e gordos, mas todos de peles marcadas pelo sol, emborcavam canecas de cerveja enquanto empregadas lhes caíam nos colos com os braços desnudados e corpetes mal presos. Alguns agarravam-nas enquanto serviam e apalpavam-nas por onde podiam e elas riam-se. Um grande grupo de marinheiros reunia-se em redor de uma mesa soltando assobios e incentivos para os únicos dois que nela se sentavam. Eram ambos largos de ombros, de barbas esfarrapadas. Um deles era calvo e no lugar do cabelo, assim como ao longo dos braços, exibia uma série de desenhos, e o outro tinha uma pala negra no lugar do olho esquerdo. Ambos se debatiam num intenso braço-de-ferro. Palito riu-se ao ver um dos homens ficar vermelho como um tomate e arreguilar os olhos parecendo suster a respiração.

— Então? Conta lá! Só vejo cabeças. – insistia Grilo voltando a subir às paletes após Boca-Seca ter empilhado as que trouxera.

Grilo esticou-se apoiando-se também contra a janela que rangeu com o peso acrescido. A rapariga não lhe prestou atenção e continuou a analisar a sala.

Para lá do braseiro que ardia no centro da sala, outro grupo se formara. Encostados à parede, três deles tocavam os seus instrumentos: um bandolim, uma flauta e uns tambores pequenos. À sua frente, quatro homens brandiam as canecas no ar, abrindo as bocarras em canção e dançando de braços entrelaçados, fazendo a cerveja voar para todos os lados.

— Estão tão bêbados! – Respondeu, por fim, Palito – Cantam e lutam mas não vejo-

Com um audível crack, o varão de metal onde se segurava quebrou fazendo-a cair para cima da janela inclinada. Outro crack mostrou que as dobradiças enferrujadas não aguentavam com o peso. Foi o suficiente para que Palito caísse com a janela para dentro da taberna.

Bateu com as mãos e o braço esquerdo, mas felizmente a queda fora curta. Sentiu o fedor da cerveja e a sua forma líquida sobre as suas mãos e a sua roupa. Levou uma mão à testa onde sentiu um corte pequeno que foi comprovado por algumas pingas de sangue na mão arranhada. Continuava a ouvir a música e a algazarra de vozes trovejantes e esperou que ninguém tivesse reparado nela por entre a confusão.

 Foi só quando ergueu a cabeça, que reparou que caíra sobre uma das mesas largas, atirando as canecas e um baralho de cartas ao chão. Olhando em redor, deparou-se com homens de caras duras e secas que a admiravam com espanto. Rapidamente olhou para cima e viu os olhos e o topo da cabeça de Grilo e Boca-Seca, também eles de olhos arregalados. Quando apanhou o seu olhar, Grilo não perdeu tempo e os seus pequenos olhos negros fugiram do buraco da janela. Boca-Seca permaneceu por um pouco mais, mas ao ser agarrado por Grilo os seus olhos azuis desapareceram também na noite. Palito sentiu o coração saltar no peito.

— Ora, ora… Parece que os carapaus agora caem do céu.

A voz rouca que resolvera quebrar o embaraço foi então engolida por uma corrente de risadas profundas. A voz viera de trás de si, mas antes que se pudesse virar puxaram-lhe o braço direito e ficou cara a cara com um homem gordo e enrugado, de pele queimada e de barba loira farta. Tinha uma enorme cicatriz na testa e o seu bafo fedia a álcool e a peixe podre e bramiu:

— A pescaria ‘tá fraca, em vez de nos mandar uma sereia o Pai Salgado manda-nos uma sardinha pequena… Olhem ‘pra ela, ainda nem tetas tem!

Tentou tocar-lhe o peito para confirmar o que dissera mas ela soltou o braço com rapidez. A força fora tanta que a mesa virou e ela caiu de costas no soalho, que por pouco também não quebrou, emitindo apenas um som oco e deixando-lhe uma dor forte no traseiro. Os homens em seu redor, soltaram de novo fortes gargalhadas.

Instintivamente, ela rastejou para trás, sentindo a madeira decrépita lascar sob as suas mãos. Embateu em algo e foi erguida pelos braços por umas mãos fortes e rudes.

— Oy, Belon! Não és tu que gostas delas novinhas?

Uma cabeça branca ergueu-se por entre a multidão que se reunia em volta do concurso de braço de ferro. Tinha apenas quatro dentes da frente, três em baixo e um em cima, amarelos e apodrecidos

— És um merdas! Sabes bem que s’ ainda nã’ tiver sangrado nã’ m’ interessa!

Quem a segurava aproximou a boca do seu ouvido. Sentiu-lhe o bafo quente no pescoço e um odor pungente a cebola.

— Responde ao homem, rapariga! És mulher ou não?

— Solta-me!

Com um safanão, Palito soltou-se das suas mãos. Os marinheiros continuavam a rir. Pareciam não conseguir fazer outra coisa – fora beber e berrar alto.

Recuando alguns passos, de costas e aos tropeções, Palito acabou por embater em algo duro que a travou que a travou por completo. Ao virar-se deparou-se com uma sombra, uma montanha em corpo de homem. Ela sentia o pescoço estalar só por erguer a cabeça para enfrentar o rosto dessa penumbra. A luz amarelada das candeias e das velas iluminava-lhe a pele escura dando-lhe reflexos dourados. Acima do pescoço distinguia-se apenas o branco dos olhos e o cintilar de metal na orelha e sobrolho. Olhava-a, impassível, tal qual uma estátua com olhos humanos.

Palito, de boca aberta e olhos arregalados, afastou-se mais uma vez e acabou por voltar a cair de rabo ao escorregar na cerveja que lhe pingava da roupa. Acabou por soltar uma corrente de impropérios que fez os homens soltar risos ainda mais ruidosos enquanto batiam com os punhos nas mesas, agarrados às barrigas. Ela procurou, com o olhar, por uma porta, alguma saída daquele antro abafado e barulhento que fedia a suor, cerveja, peixe e cebola, deixando-a tonta e maldisposta. Contudo, a multidão em redor estava tão densa que se tornava até difícil vislumbrar uma janela. Estava prestes a levantar-se e a desatar a correr pela multidão, há procura de uma saída, quando escutou uma voz bastante diferente de todas as outras.

— Então homens, onde estão os vossos modos?

Junto ao grande homem escuro, uma figura sentada à mesa moveu-se, levando uma caneca à boca e pondo-se de pé quase de imediato. Foi só quando passou pelo homem-montanha que Palito lhe viu a cara sob o chapéu largo. As suas feições eram duras e a pele estava queimada pelo sol mas não dava para enganar, era uma mulher. Quando esta se baixou para a olhar na cara, Palito perdeu todas as dúvidas pois sob o casaco de couro e a camisa desabotoada estavam os seis mais inchados e redondos que alguma vez vira numa mulher.

— Se a fizerem cair de novo o seu rabo poderá servir de prancha no meu navio.

— Só nos estávamos a divertir um bocado capitã, a rapariga é fácil de assustar. – A voz vinha do último homem que a segurara. Ainda falava por entre risos. – Já a ia levar para fora.

— Se bem me lembro ainda te assustaste mais quando aquela taberneira de Lais te disse que estava prenha.

O homem calou-se enquanto todos os outros desataram às gargalhadas. Um deles até acabou por cair do banco fazendo as gargalhadas aumentarem ainda mais.

“Capitã?”, Palito nunca tinha visto ou ouvido falar de uma mulher com aquele título. A desconhecida levou a mão à camisa e retirou um lenço de linho.

— Deste uma valente queda.

Ergueu a mão para a testa de Palito e esta encolheu-se quando viu duas garras metálicas no lugar do quarto e quinto dedos. Ela sorriu mas não se deteve, acabando por limpar-lhe o corte. Palito não se atreveu a mexer de novo até ela afastar a mão.

— Tens nome? – Continuou a capitã, recolhendo o lenço e voltando a guardá-lo dentro da camisa.

A rapariga abriu a boca mas antes de articular as palavras resolveu dizer apenas o necessário.

— Palito.

A mulher ergueu uma sobrancelha e soltou um risinho.

— Palito? – Repetiu e deu uma olhadela à montanha atrás de si. Ele só pestanejou. Era tão alto que apesar de estar sentada no chão ainda lhe consegui ver a cabeça a flutuar sobre a da capitã. – Consigo ver porquê. – Sorriu ela olhando a rapariga de cia abaixo. – Muito bem, Palito. Diz-me lá como é que caíste por aquela janela e porque é que não estás em casa, na cama?

Farta de se encolher como um bebé assustado, a rapariga ergueu-se e olhou em redor. Todos os homens nas mesas em redor se tinham calado e observavam-nas com atenção. Palito mirou a mulher e analisou-a. Trazia redes sobre a roupa de uma mistura de couro, algodão e linho. Uma pistola pendia-lhe no coldre do cinto. O cabelo escuro esfiapava-se debaixo do chapéu de três bicos, caindo sobre os ombros num emaranhado de tranças e cabelo solto. O corpete apertado parecia ser a razão pela qual a camisa se desabotoara e as curvas se tornavam tão visíveis. Noutras roupas poderia ser considerada uma bela mulher mas, vestida daquele modo, não aparentava mais do que uma rude marinheira, ou pirata.

Palito olhou a janela por onde entrara sem perceber bem porque o fizera. Talvez esperasse ver Grilo e Boca-Seca tentando arranjar maneira de a tirar dali, mas eram uns traidores. Apertou os dentes e injuriou-os em pensamento.

— Eu e os meus amigos queríamos ver o que se passava aqui dentro. Eu trepei para a janela, caí e eles… eles fugiram. – Era certo que Boca-seca fora arrastado por Grilo mas de qualquer das formas não voltara atrás, era tão cobarde como o outro.

— Pois isso vi eu. Homens… ainda se dizem cheios de coragem.

Os marinheiros retorquiram entre si face ao comentário. A capitã levou as mãos às ancas e virou-se para eles.

— Minto? Se não vos obrigasse a mostrar que têm colhões ainda os mantinham escondidos debaixo das saias.

Os homens voltaram a rir mas desta vez muito mais baixo, abafando os risos com as canecas. A capitã virou-se de novo para Palito, suavizando as feições agudas e abrindo um sorriso largo, como um corte na pele morena.

— Bem – olhou em volta e pousou uma mão na anca – Já pudeste ver o que se passa aqui dentro, ou a maior parte, felizmente. O que achas então do nosso covil?

A música continuava a ressoar pelas paredes, e o som de um acordeão erguia-se acima de todos os outros. Palito olhou em redor, ajeitando a roupa engelhada e malcheirosa. Olhou a capitã de esguelha. Ela continuava a sorrir, e o seu ar bem-disposto deu-lhe coragem para revelar o que lhe ia na cabeça.

— Cheira pior que a corte de animais da minha vizinha e os homens parecem bobos, só sabem rir. – Parou por um momento, e como que para comprovar a sua teoria, contro tudo o que ela esperava, os homens que a ouviam voltaram a rir alto enquanto a capitã arreguilava os olhos. Palito finalizou. – Mas acho que… gosto. Parece divertido.

Por um momento, parecia que a Capitã a ia repreender. Mas passado um momento em silêncio, enquanto analisava o rosto da rapariga, virou-se para os homens em redor e um riso que começou pequeno evoluiu numa gargalhada sonora e melodiosa, para uma mulher como ela. Todos rebentaram em risos, e aqueles que até ao momento não tinham dado por nada do que se passara, viraram-se e ao vê-la, apontaram e riram.

A capitã baixou-se, encarando Palito face a face, ainda sorrindo.

— Palitinho, sabes cantar?

A pergunta espantou-a e por instantes ficou incerta do que dizer, contudo… já tinha dito o que lhe ia na cabeça até ao momento, porque não continuar? Encarando a capitã, Palito anuiu com um breve aceno da cabeça. O sorriso da capitã, alongou-se ainda mais e com um sinal ríspido do queixo fez Palito flutuar. Umas mãos largas e fortes agarravam-na pelos sovacos e erguiam-na no ar como quem levanta, bem… um palito. Assustada, a rapariga debateu-se e com um vislumbre da face de quem a segurava, viu que era o homem sombra. De alguma maneira, tinha-se colocado atrás dela, por entre a confusão, sem ela dar por isso. Palito replicou, esbracejando e lançando ao ar profanações que passavam despercebidas pela confusão. Deixara de ver a capitã e a coragem faltou-lhe, o coração batia cada vez mais depressa enquanto era levada a voar sobre a multidão nas mãos de uma montanha. Após sobrevoar algumas mesas, o grande homem começou a baixá-la junto aos músicas que vira anteriormente. Ao verem-nos, os músicos abrandaram as melodias, entreolhando-se. Quando se recompôs, Palito viu que tinha sido colocada sobre uma das mesas atrás dos músicos. Conseguia ver toda a taberna daquele ponto e uma boa quantidade de olhos já estava pousada sobre si. Procurou a capitã com o olhar mas não a viu. Deu uma olhada ao homem montanha, mas este mirava impassivelmente em frente, para todo o lado e para lado nenhum. O coração começou a acelerar de novo e os seus membros tornaram-se em pedra. Eis-que, sem aviso, a voz da capitã soou sobre a confusão como um trovão.

— Silêncio, escumalha!

Aos poucos, a algazarra tornou-se num burburinho, e até os instrumentos tinham parado de tocar. Foi quando vários dos homens moveram o olhar para uma das mesas junto ao palco improvisado, que Palito finalmente a viu. A capitã passava despercebida por entre o prol, só o seu chapéu longo e negro a fazia destacar, mas apenas ligeiramente. A mulher olhava a rapariga com atenção e arrancando uma caneca da mão mais próxima, continuou.

— Podes começar, palitinho.

Palito engoliu em seco. Olhou em redor. Respirou fundo. E… nada. Não sabia o que cantar, não sabia o que queriam que ela cantasse ou porque queriam que cantasse. Uma pinga de suor escorreu-lhe pela testa. Todos os olhos se tinham pousado nela, esperando, e esperando… e esperando. Quando nenhum som lhe saiu dos lábios o burburinho aumentou acompanhado por risos. Palito engoliu de novo em seco, mostrando uma cara de quem estava prestes a vomitar. Então a voz da capitã ribombou de novo, pedindo silêncio. Em seguida deu uma cotovelada a um dos homens que se sentava a seu lado, fazendo-o engasgar-se na cerveja. Murmurou-lhe algo e após outro gole, o homem começou a entoar, hesitante.

 

“ Ohh… que fazer a um bêbado marinheiro,

Oh, que fazer a um bêbado marinheiro,

Oh, que fazer ao grande bebedolas,

Logo p’la manhã?”

 

Em redor, alguns homens acompanharam-no na cantoria desafinada, repetindo os versos fora de tempo. Palito conhecia a música, ouvira-a várias vezes pelas docas mas quando tentara cantá-la durante as lidas da casa a mãe acertara-lhe na cabeça com o cabo da vassoura. Mas ali podia fazê-lo, a mãe não estava lá, nem o pai, nem ninguém que os conhecesse. Mas atrever-se-ia? Quando a primeira estrofe da música acabou, os marinheiros baixaram de novo as vozes, esperando com expetativa que ela continuasse a canção. Um dos músicos puxou uma nota ao acordeão e olhou-a com um sorriso dos seus dentes amarelos. Palito lambeu os lábios, e antes que se pudesse acobardar, fechou os olhos com força e começou a cantar a altos pulmões.

 

“Vai ‘pró escaler ‘té tostar,

Vai ‘pró escaler ‘té tostar,

Ohh vai ‘pró escaler ‘té ‘cobrear,

Logo p’la manhã!”

 

Por algum tempo, Palito cantou sozinha, acompanhada apenas pelo acordeão, mas quando se preparava para repetir a estrofe os marinheiros soltaram vivas e bateram as canecas umas nas outras, rindo alto, tal como faziam no início. Quando deu por ela os homens erguiam as vozes para a acompanhar mas com a voz suficientemente baixa para que a voz dela ainda se ouvisse.

 

“Isto se faz com um bêbado marinheiro,

Isto se faz com um bêbado marinheiro!

Oh isto se faz com um grande bebedolas

Logo p’la manhãaaa!”

 

Um dos homens, de barba farta e negra, aproximou-se da Palito e agarrando-a tão facilmente como o homem-sombra, sentou-a às suas costas e levou-a aos saltinhos pela multidão, para a frente e para trás. Homens erguiam as canecas, homens riam, homens abraçavam-se para não caírem redondos no chão e homens erguiam as suas vozes, fazendo as paredes ribombar com música. Todo o medo e nervosismo de Palito desvaneceram. A capitã sorria-lhe quando a olhava e Palito começou a fazer o mesmo, enquanto deixava a voz voar pela garganta como nunca o tinha feito até ao momento. Era aquilo a liberdade? Era o aquilo sentir-se livre? Se realmente o era, Palito voltaria. Voltaria quantas vezes pudesse.

 

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

1º Capítulo

Verdade seja dita, Palito prometeu e cumpriu. Voltou à taberna. Vez atrás de vez, atrás de vez, sempre que podia… e sempre que não lhe era permitido. O sentimento de liberdade que o lugar lhe trazia alastrou-se ao ponto de a jovem não ter outro desejo na vida fora ser livre para viver aventuras. Palito esperava ansiosamente pela chegada da Capitã Blackfalls de cada vez que ouvia um murmúrio nas docas sobre o seu regresso. Recebia-a com grande alarido e por sua vez era recebida com presentes e novas histórias. À noite, quando todos dormiam, esgueirava-se pelas portadas da cozinha para correr à taberna e passar a noite a escutar as aventuras da capitã e cantar para os seus marinheiros, que se foram acostumando à sua presença com agrado, tomando-a como parte da sua família.

Após aquela primeira noite, Palito afastou-se cada vez mais de Grilo e Boca-Seca. Eles quiseram saber o que se passara mas não pareciam interessados em desculpar-se por a terem deixado para trás. Palito nada lhes contou e dedicou-se às suas próprias aventuras, falando com os dois apenas quando se sentia mais só. Dois anos depois, Boca-Seca partiu num dos barcos depois de ser recrutado por um capitão mercador como grumete. A ideia de passar o resto dos seus dias em alto mar deixou-o nervoso, mas por insistência do pai acabou por abandonar a aldeia. Porém, antes de partir, despediu-se de Palito como se a considerasse uma boa amiga e deu-lhe uma explicação pela qual não lhe pedira desculpa naquela noite.

— Eu ia pedir-te desculpa! – Informou ele. – Até tinha preparado um discurso e tudo, mas depois de ver o quão feliz ficavas sempre que voltavas lá achei que não valia a pena pedir desculpa por um favor que te fizemos.

Palito não ficara impressionada com o discurso e dera-lhe um último murro no braço antes de ele zarpar com um estranho sorriso nos lábios. Depois disso ninguém mais ouviu falar de Boca-Seca. Certo dia um burburinho começou nas docas de que um dos navios mercantes do seu capitão tinha sido capturado por piratas nas terras do sul. Passado um mês a notícia chegou de um dos próprios navios do capitão, a confirmar os murmúrios o que levou todos, inclusive o pai de Boca-Seca, a acreditar que ele estaria com certeza morto. Um pequeno serviço fúnebre fora feito dois dias depois. O sacerdote acendera uma pira num dos velhos barcos de pesca e um grupo de homens lançara-o ao mar. Palito não contava derramar as lágrimas que derramara mas mentalizou-se de que tinha razões para tal. Apesar de tudo o rapaz fora um dos poucos amigos que tivera. Após perder Boca-Seca, Palito e Grilo não se voltaram a falar, tendo-se afastado cada vez mais quando o rapaz começara a trabalhar a sério como padeiro na loja do pai.

Com a perda dos amigos, a vida de Palito passou a ser preenchida pela tentativa incessante da mãe de a tornar numa senhora. Uma tentativa fútil, contudo. As histórias sobre as aventuras da Capitã Blackfalls fizeram crescer em Palito um desejo incansável de aventura. Vestir-se e comportar-se como uma senhora não fazia parte do plano. Era difícil subir às árvores, e nadar pelos corais com um vestido ou uma saia. E uma senhora não se podia rir a altos pulmões, cantar na taberna ou soltar impropérios. Uma vida de regras e obediência não era futuro para Palito, não depois de tudo o que escutara na taberna. Queria escalar montanhas, cantar para um rei, manejar um canhão, conhecer outras culturas em primeira mão… não ficar em casa a bordar e a cuidar de crianças, tinha muito tempo para isso mais tarde. A jovem fez questão de não esconder este facto da sua família, mas nem o pai nem a mãe pareciam contentes com esta sua rebeldia. Com uma irmã mais nova e mais bem comportada, mais feminina, Palito sentia-se como a ovelha negra da família e sem dúvida que com o passar do tempo começou a ser tratada como tal. A mãe queimou-lhe toda e qualquer roupa que tivesse o mínimo de ligação masculina: calças, túnicas, camisas, botas, etc. Foi só com muito cuidado que conseguiu salvar um par de botas curtas de couro negro, resistentes o suficiente para as pequenas aventuras para as quais se escapulia sempre que podia. Sapatos baixos, sapatos de tacão, saias longas e apertadas, camisolas com folhos, laços e plissados, tudo o que ela não suportava e passou a usar dia a dia. Com o tempo foi-se habituando ao novo vestuário, porém daria tudo para poder ter a roupa que a mãe lhe queimara de volta. Mas é quando entra em idade de casar e os pais lhe começam a arranjar casamento, que a rapariga rebelde volta à tona.

Pouco depois de fazer dezasseis anos, eram várias as famílias que a visitavam, com rapazes da sua idade, alguns mais velhos e outros mais novos. A maioria rapazes simples que, casando com um rapariga burguesa, garantiriam uma vida melhor para si e para a sua família. De vez em quando, algum burguês mais velho que passara da idade habitual para o casamento e se mostrava desesperado por arranjar uma noiva com, pelo menos, o mesmo estatuto. Não era que alguns não fossem bem-parecidos, ou pelo menos simpáticos, mas Palito não conseguia evitar sentir uma comichão incessante na pele sempre que ouvia a palavra casamento. Sentia náuseas, febres repentinas e arrepios de terror que lhe arrepiavam os cabelos. Queria ser livre para fazer o que quisesse. Queria ser livre. Era a isso que tudo se resumia. Por essa razão Palito fez questão de ser vista exatamente como a ovelha negra, uma rapariga desobediente e selvagem demais para qualquer homem. As sapatadas e castigos valeram a pena quando as famílias interessadas se desinteressaram mal a viram coberta de lama, molhada e soltando palavrões a torto e a direito.

Três anos passaram, Nala, a irmã, ficou prometida a um jovem de uma boa família da cidade mais próxima e casaria dentro de um ano.  Já Palito continuava solteira e sem arranjinhos. Com dezanove anos, passou a ser vista na aldeia como uma rapariga sem remédio, uma solteirona sem esperança. Demasiado indomesticada para ser uma boa esposa. Tais comentários magoavam-na um pouco mas ao mesmo tempo traziam-lhe conforto. Aliviavam-na. Talvez um dia tivesse a sorte de os pais a darem como causa perdida e talvez aí arranjasse maneira de abandonar a aldeia e poder seguir o seu próprio caminho. Criar, viajar, explorar, havia um mundo inteiro para lá daquele porto. Um caldeirão de possibilidades. Bastava-lhe uma oportunidade, uma pequena janela deixada aberta… e voaria.

***

As nuvens de chuva desvaneceram logo pela manhã, abrindo caminho a um sol fraco e a uma luz que não era capaz de fazer mais do que amornar graças ao vento salgado. Notaram-se aí os primeiros movimentos no porto. Barcos saiam para a pesca, que garantia ser fortuita após a tempestade nocturna e quando o nevoeiro matinal se dissipou vários mercadores iniciavam a pesarosa tarefa de encher os barcos com a mercadoria que pretendiam vender em portos distantes. À  medida que a manhã ia avançando, o vento ia abrandando, aumentando a temperatura até se prostrar um dia ameno de primavera. Num dos cais vazios, sentada com os pés a bambolear sobre a água, uma jovem de não mais de dezanove anos, mirava o horizonte, esperando ver surgir as velas vermelhas que conhecia tão bem. Nas suas mãos rodava um grupo de elos finos de aço, intrinsecamente dobrados sobre si mesmos, num emaranhado de curvas e aberturas aparentemente impossíveis de separar. Três anos, e ainda não tinha resolvido o quebra cabeças. Mas não se parecia importar, trazia-o no bolso e manejava-o mesmo sem olhar, acalmava-a, não queria resolvê-lo por isso mesmo.

Observava os mercadores a carregar os barcos com as suas paletes de metais, tecidos baços e sacos de farinha e batatas sabendo que quando voltassem toda a mercadoria seria substituída por sedas coloridas, especiarias, bijuteria e novas ligas de metal, entre outros. A tradição nunca se quebrara, tal como a rotina. Conhecia-a de cor. Todos os dias no porto eram iguais, mas por incrível que pareça, havia sempre alguma novidade, ou várias. A última novidade que rondava a doca há já dois dias, era de que o navio da Capitã Blackfalls fora visto a navegar em direcção ao porto. Estaria de passagem na Seada-a-Velha, onde reabasteceriam provisões. Segundo as conversas de doca chegaria naquele mesmo dia. E por isso Palito esperava, como esperara tantas outras vezes. Saíra de casa com o pretexto de ir cedo ao mercado e assim garantir os melhores vegetais e ovos caseiros e talvez algum peixe. O mercado abrira fazia uma hora e o cesto de Palito continuava vazio. Apenas lhe interessava o que lhe traria o horizonte e não o cu de uma galinha.

Barcos abandonaram porto, e barcos de pesca voltaram com a apanha do dia. E nada de velas vermelhas no horizonte. Mais uma hora passou e um movimento chamou-a à atenção. Um movimento no horizonte, velas, não havia como enganar! Ergueu-se e semicerrou os olhos tentando discernir as cores. Eram brancas, como tantas outras. Palito deixou-se cair de novo sobre o cais bolorento, brincando com o os aros de metal e soprando a franja comprida para longe dos olhos. 

Mais um barco de pesca voltou ao cais. Palito bufou. O mercado esvaziaria em algumas horas e voltar para a mãe sem nada não era uma opção. Talvez os burburinhos fossem errados, talvez o barco avistado fosse um outro qualquer. Agarrou o metal nas mãos com força e mordeu o lábio, mirando a água que batia no balaústre sob os seus pés. A água pareceu bater com mais força por um instante. Palito ergueu uma sobrancelha, pensando que os olhos a traíam. A pouco e pouco a água oscilou com maior ferocidade. Viu algo mover-se na periferia do olhar. Ao erguer a cabeça, um sorriso cortou-lhe a face. Rodeando a enseada, vindo de sudeste, um navio de velas encarnadas, que eram recolhidas com azáfama, aproximava-se da doca com vagar.

— Até qu’ enfim!

Palito ergueu-se de um salto e correu para a ponta oposta do cais, agarrando a saia que teimava em prender-lhe os movimentos. Rodopiou por entre pescadores que puxavam as redes para fora dos barcos. Marinheiros com paletes e outros com baldes de percebes acabados de arrancar dos cascos dos navios. Já na outra ponta do cais, aguardou, em pé, pela aproximação do navio. Porém, com as velas recolhidas, o seu ritmo era lento enquanto rodeava as encostadas da enseada. Palito bateu com o pé, caminho de um lado ao outro da entrada no cais, até que se decidiu sentar na balaustrada em redor do passadiço de madeira. O navio deslizava como um caracol. Quando soltou a âncora, Palito voltou a erguer-se. Aos poucos a grande galé foi-se aproximando do cais até que o passadiço de madeira soou com o baque ruidoso da prancha de desembarque a ser pousada. Palito apressou-se para a saída da galé e foi abalroada por uma série de marinheiros, molhados e sujos. Fedendo a peixe e suor, ansiosos por colocar pé em terra firme. Leve como era, foi arrastada até à ponta do passadiço até que perdeu o pé e se sentiu a cair em direcção à água que batia em baixo. Sentiu uma mão segurá-la pela cintura e puxá-la para trás.

— Desastrada como sempre.

Palito suspirou de alívio ao ver a água afastar-se da sua visão. Mas o alívio logo foi substituído por irritação. Mesmo sem ver a cara do seu salvador conhecia a sua voz demasiado bem. Com um puxão forte, afastou as mãos que a seguravam pela cintura e virou-se, apoiando-se numa das balaustradas.

— Preferia ter caído, pelo menos a água do mar não cheira tão mal. - Replicou, soltando um olhar de puro aborrecimento.

O jovem cruzou os braços e riu-se. As gadelhas castanhas caiam-lhe sobre os olhos, como que coladas à testa por uma mistura acetinada de água do mar e suor. O nariz achatado dilatava-se com cada riso, que juntamente com as bochechas rosadas lhe davam um certo ar suíno. O queixo quadrado encontrava-se picado por uma penugem mais arruivada do que castanha, que se começava também a notar por entre a camisa de linho remendada que usava sob o colete encardido.

— Da próxima deixo-te cair então e depois dizes-me o quão agradável a água fria e lamacenta do cais é. - Continuou ele coçando a ponta do nariz.

— Melhor do que o teu cheiro a catinga é de certeza. - Palito respondeu-lhe mas sem lhe prestar muita atenção. Ao invés esticara o pescoço para espreitar sobre ele e tentar localizar a capitã enquanto alguns homens descarregavam mercadorias.

Ele imitou-a, mas fazendo os possíveis para lhe tapar a visão, imitando os seus movimentos como se se tratasse de um reflexo num espelho partido, sujo e poeirento. Palito respirou fundo e desistiu, levando as mãos à cintura e olhando-o, de cabeça alta, com desprezo. Mas tal como antes ele imitou-a, acabando por mostrar um sorriso meio amarelo no final.

— Então e se eu te pagar um copo na Inclinada, mudas de ideias?

A sua perseverança era de louvar, mas de pouco lhe servia visto que Palito o recusava constantemente. Desta vez não foi diferente.

— Sobre o quê? - Fez-se Palito de desentendida.

— Sobre o meu cheiro, e o meu abraço protetor.

Palito imitou-lhe o sorriso, parecendo interessada. Ele aproximou-se com um passo e Palito perdeu o sorriso.

— Nem que fosses o último homem vivo e eu fosse cega, surda e tivesse rolhas no nariz! - Berrou-lhe na cara.

Falara tão alto que em instantes todos os homens no cais pousaram os olhos em ambos e começaram a cochichar e a rir entre si.

— Ninguém te ensinou a não te meteres com tubarões, rapaz? - Soou uma qualquer voz de homem mais longínqua que instigou risos em redor.

As bochechas já rosáceas do rapaz ficaram ainda mais vermelhas e a sua postura amoleceu, descaindo-lhe os ombros e o orgulho. Sem aviso, uma mão caiu-lhe no ombro e o seu corpo voltou a enrigecer. Desviou-se um pouco para se puder virar para trás, e Palito sorriu por fim, ao ver a cara que tanto esperava reencontrar.

- Não devias estar a fazer contagem da mercadoria, Guill?

O rapaz perdeu toda a cor da cara, e virando o olhar para as tábuas sobre os pés, abanou freneticamente a cabeça, para cima e para baixo, soltou um rápido "Sim, s'nhora" e correu para o interior do cais onde os restantes homens já tinham começado a amontoar a mercadoria. Palito perdeu então qualquer interesse nele e num pestanejar agarrou-se ao pescoço da capitã num abraço forte. Esta viu-se obrigada a recuar em sobressalto, riu e deu à jovem somente umas breves palmadinhas nas costas. Com um forte mas gentil puxão, forçou Palito a larga-la e afastar-se. Palito não se importou, soltou-a, ainda a sorrir enquanto a capitã limpava a garganta do embaraço.

- Então, tenho uma reputação a manter, palitinho. - disse a capitã, recompondo o remendado casaco de cabedal negro.

Palito cruzou os braços e encolheu os ombros, mostrando um sorriso trocista. Ela sabia que a capitã não era dada a mostras de afeto, e era por essa razão que o fazia, porque apesar de ela não o demonstrar sabia que a mulher séria era bastante solitária, um abraço de vez em quando não a mataria. A capitã olhou-a então de cima a baixo, levando a mão mutilada à testa e franzindo as sobrancelhas em claro espanto.

- Não posso continuar a chamar-te palitinho, não é nome decente para dar a uma mulher feita. Suponho que Palito ainda se adequa, por isso terá de servir. - com uma mão rápida deu a Palito um forte beliscão na barriga que a fez recuar. - Bem que podias ganhar mais alguma carne nesses ossos rapariga!

- Se isso acontecesse tinha de arranjar outro nome para me chamar e depois ninguém me conhecia! - Palito arqueou as mãos em redor da cintura imitando uma barriga gigantesca enquanto enchia as bochechas de ar. - "Olha quem vai ali, é a Baleia Castanha!", "Baleia Castanha? Onde?!", e depois como não sabiam que era eu todos os pescadores saiam com os maiores barcos e os seus arpões para o mar para apanhar a mítica baleia e quando se apercebessem de que não havia nenhuma iam tentar linchar-nos. Nã'. É melhor continuar a ser a Palito. Assim só haverá problema se alguém se esquecer de que sou eu e tiver uma espinha de robalo presa ente os dentes, e isso não é razão para linchar ninguém... acho eu. embora já tenha visto...

O discurso de Palito foi interrompido quando sentiu o seu cabelo ser despenteado sob a mão pesada da capitã. Com a mesma mão puxou-a pelas costas para que a acompanhasse ao longo do cais. Quando passaram pelos homens que descarregavam as mercadorias, Guill mostrou-lhes um olhar parvo mas logo retomou ao seu trabalho.

- Nem sabes como é bom ver-te bem. Estes últimos meses têm parecido cada vez mais longos. - começou a Capitã num tom mais sério, que logo se alterou quando apertou o ombro a Palito. - Continuas uma fala-barata magricela com mais impulso que juízo, mas sei que falo por todos os meus homens quando digo que já sentíamos falta disso.

 Palito conseguia entendê-la de certo modo. A verdade era que as viajens da capitã pareciam alongar-se cada vez mais, as razões para tal é que ainda não lhe eram claras. Quando tinham tempo para falar de cada vez que voltava, a Capitã já estava bêbada e tudo o que ela e os seus homens pareciam querer era ouvir Palito cantar e contar piadas na velha taberna, a Inclinada. A sua teoria era de que, tal como outros tantos marinheiros, ela desejava esquecer-se dos problemas pelo menos durante alguns dias. Até ao momento Palito nunca se importara muito com o que se passava nas viagens  da Capitã, isso fora as aventuras fora do comum que a deliciavam tantas vezes. Porém, estava mais velha e a mulher áspera já se tornara tanto parte da sua família como os seus pais, se havia algo que a perturbava queria sabê-lo. Coçou o brinco da orelha direita e questionou-a:

- As viagens da Capitã têm sido mais longas. É difícil saber quando voltam aqui à Seada. Tem acontecido alguma coisa? Os mares estão mais bravos? Há problemas com os homens?

Parando a caminhada, a Capitã Blackfalls olhou Palito enigmaticamente. Era difícil saber se estava surpreendida pela jovem se preocupar com tal coisa ou se sentia ofendida pelas suas capacidades de navegação serem questionadas. As suas sobrancelhas claras caíram um pouco mais sobre os baços olhos cinzentos e com a mão mutilada puxou para baixo a aba do chapéu negro. Esculpiu um sorriso no canto da boca e levou as mãos à cintura, observando as primeiras habitações que surgiam para lá do cais, na rua das Fanecas.

- Falamos mais logo à noite. Na Inclinada, à hora do costume, ou os teus pais já te gradearam as janelas?

- Ha! Agora também fecham a porta da cozinha as chaves e puseram-me traves na janela, mas não estavam à espera que eu ameaçasse a minha irmã para me deixar usar a janela do sótão. - A capitã soltou um riso abafado e abanou a cabeça, divertida enquanto Palito mostrava um dos seus sorrisinhos de raposa. - Estarei lá.

- Muito bem senhora Trepa-Telhados, é altura de voltar aos meus deveres de severa capitã. E tu devias voltar para casa, o Sol já está a pique. - disse a capitã olhando o céu de olhos semicerrados.

Para surpresa de Blackfalls, de um dos seus homens e de um dos guardas do cais - que conversavam ali perto - Palito soltou um guincho, remexendo o bolso da saia, que começava a esfarrapar junto aos pés, e tirando um papel. Olhou também o sol e confirmou as palavras da Capitã. Agarrou firmemente no cesto de vime, agarrando a saia com a outra mão.

- Vemo-nos logo, se não volto a minha mãe esfola-me. - gritou para trás enquanto se afastava a correr.

- Certifica-te que ela deixa ficar a pele dos pés! Vais precisar dela para continuar a correr de uma lado para o outro! - ainda ouviu a voz da capitã exclamar, embora as últimas palavras já fosse tão ténues que foram mais assumidas que ouvidas.

O mercado estaria prestes a fechar, isto se não tinha já fechado. Se voltasse para casa sem nada, a mãe saberia por onde andara e Palito não se sentia com vontade de ouvir sermões sobre obediência, respeito, responsabilidade e bons costumes. A lenga-lenga era sempre a mesma, Palito dava por si muitas vezes a recitar as palavras da mãe muito antes de ela as enunciar. O dia começara bem e ia fazer os possíveis para que continuasse assim e para isso teria de aplacar o humor da mãe e isso iria exigir rapidez, astúcia e uma mentira bem arquitetada.

Com todo a força das suas pernas, Palito voou pelas ruelas, cortando atalhos onde os conhecia, acabando por surpreender pessoas e alertar alguns cães. Após uma série elaborada de curvas e muros trepados, chegou finalmente à praça do mercado. Ainda estava aberto! Contudo muitos dos vendedores começavam já a arrumar os estandartes a mercadoria que sobrara, que já era pouca. Palito abriu o papel amarfanhado que trazia no bolso e deu uma vista de olhos rápida. Olhou em redor e procurou por tudo o que se conseguia lembrar. Correu de barraca em barraca, agarrando no que podia e no que lhe parecia certo, e deixando um rasto de moedas para trás. Uma vendedora ou outra recusava-se a aceitar o preço que lhe era oferecido, e levada pela pressa Palito era obrigada a deixar os bens para trás e esperar ter melhor sorte na que se seguia. Por entre correrias e trocas, Palito conseguiu arrecadar a maioria dos bens que se recordava: aipos, alfaces, farinha de milho, açúcar, tabaco e uns peixes que conseguiu arrancar do fundo de uma palete já a ser arrumada por uma peixeira; tinha contudo a ideia de que tinha sido roubada de pelo menos duas moedas. Mas não importava, conseguira arranjar maneira de provar que estivera no mercado, faltava apenas a mentira.

A vontade de Palito era de levar o seu tempo a chegar a casa, para melhor se lembrar de alguma mentira convincente, mas sabia que quanto mais demorasse mais desconfiada ficaria a mãe e mais perguntas lhe faria, como tal apressou-se a tomar o caminho para casa, tal como se apressara a chegar aos mercado. Pensou em dezenas de mentiras fáceis, mas nenhuma parecia ser capaz de satisfazer a mãe. Podia dizer que se distrairá a falar com amigas, mas a mãe sabia que ela não se dava com a maioria das raparigas da vila. Podia dizer que antes de voltar a casa fora só dar uma vista de olhos rápida aos barcos e que caíra ao cais, mas aí teria de arranjar maneira de se molhar pelo caminho e isso não seria fácil sem dar nas vistas. Pensou e correu, pensou e correu quase tropeçando em gatos e deitando ao chão velhinhas que limpavam os pátios ou bordavam às portas. Quando deu por ela, estava em frente a casa, a olhar a porta vermelha da entrada. Na cabeça não tinha ideia alguma, mas não demorou mais tempo, rodeou o muro de pedra do pátio para entrar pela porta da cozinha. Meteu a mão ao bolso para guardar a lista e a porta das traseiras abriu-se. A mãe saiu com um balde de água, parando abruptamente quando a viu, quase derramando o conteúdo do balde. Palito engoliu em seco e ficou paralisada, olhando a mãe com os seus grandes e temerosos olhos azuis.

- Chegas tarde. - disse apenas a mãe, pousando o balde aos pés. Franziu as grossas sobrancelhas castanhas e esticou a mão para o cesto.

Palito quase teve de se beliscar para voltar à realidade. Ainda não tinha nenhuma mentira! Esticou o cesto para mãe, hesitantemente. "Pensa! Pensa", dizia a si mesma. Com o olhar ainda focado na filha, abriu o cesto. Espreitou para dentro e remexeu o conteúdo, tirando as alfaces, velhas e escuras, para fora. Deu uma olhada à filha, alternando os olhos verdes entre ela e o interior do cesto.

- Só isto? - As sobrancelhas saltaram na testa da mãe. - Onde estão os ovos? E as cebolas? Pensei que te tinha dado uma lista, Eliana!

- Pois... a lista. - a jovem respirou fundo tentando esconder o arfar de cansaço. Como um relâmpago, surgiu-lhe uma ideia. Ainda com a mão enfiada no bolso da saia, arrancou com rapidez, e disfarçadamente, alguns fios soltos. Deixou o papel cair pelo furo. - Perdi-a! Quando cheguei ao mercado já não a tinha no bolso. Está roto, vês?" puxando o bolso para fora mostrou-lhe o pequeno furo que acabara de fazer.

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...
~

You might like 's other books...