Insânia

 

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Introduction

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Capítulo 1 | Como perder $0,99

Tudo começou com um erro. Como sempre começava. O mesmo maldito erro.

A primeira vez que o cometi foi enquanto ainda estava na escola. Ou pelo menos fingia estar. As aulas, em teoria, começavam às sete horas da manhã e deveriam acabar às doze. Mas, como bom diplomata que sempre fui, nunca conseguia chegar na hora ou, se chegava, fingia alguma incontinência urinária para passar o menor tempo possível dentro da sala.

Em uma manhã de segunda-feira, o dia mais esperado da semana para ser odiado, entre uma ida e outra ao banheiro, lembrei de um livro que tinha lido há um tempo atrás. Ele contava a história de um rapaz que decidiu se tornar escritor porque nunca havia amado antes, e que no final conhecia o amor de sua vida em uma tarde de autógrafos. O livro se chamava algo como "Tinta e Sentimento", mas eu preferia chamar de "Como perder R$24,00". 

O livro era uma bela merda, e talvez por isso estivesse tão difícil de conseguir esquecê-lo. Eu não conseguia tirar da cabeça a ideia de ser escritor. Nem minhas notas no colégio nem meus professores pareciam acreditar nessa ideia tanto quanto eu, mas se um cara conseguiu escrever um livro ruim, eu também conseguiria. Sempre quis ganhar minha vida através das palavras e, como nunca tive vocação para ser pastor de igreja, tinha colocado na cabeça que queria me tornar escritor.

Desde pequeno, eu gostava de escrever. Mas em todas as discussões que tinha com minha mãe, entre gritos de "vagabundo" e "imprestável", ela sempre terminava contando como havia começado a trabalhar muito cedo e adquirido independência desde então.

Não interessava o início da conversa, o final era sempre o mesmo. Pra ela, tanto fazia eu tirar uma nota baixa ou algum vizinho ter um ataque do coração e morrer, a conversava sempre tinha alguma relação com o fato dela ter começado a trabalhar muito cedo.

- Esse pão está velho. Vocês compraram hoje? – Eu perguntava, tentando cuspir o pedaço de trigo velho.

- Eu não acredito, tudo com esse menino é assim. Eu comecei a trabalhar quando tinha 16 anos e, desde essa época, sempre tive o meu dinheiro. – Minha mãe respondia, não tocando numa fatia sequer do pão.

- Mas eu só estou perguntando sobre o pão.

- Pois não deveria nem perguntar, Serafim. Se você trabalhasse e tivesse seu dinheiro, poderia muito bem comprar o pão que quisesse. 

- Deixa pra lá, eu como outra coisa.

O meu pai, treinado para ser engenheiro desde pequeno, assim como em sua profissão, só conseguia ver números em sua frente e, desde então, tentava fazer minha cabeça para pensar em dinheiro antes de tudo. Para ele, não bastava que eu fosse médico, advogado ou até mesmo ladrão, eu teria que escolher a especialidade que ganhasse mais ou escolher o banco mais rico da cidade para assaltar.

Explicar para eles o meu sonho não seria a coisa mais fácil do mundo, mas também não deveria ser a mais difícil. Pelo menos, era o que parecia.

- Decidi o que eu quero ser.

- Advogado, médico ou engenheiro? - Disse meu pai, sem nem ao menos tirar a colher de sopa da boca.

- Pois eu já sabia o que queria ser desde pequena. - Falou minha mãe, aquecendo a garganta para falar de trabalho.

- Quero ser escritor.

- É? Pois eu queria ser a Madonna, mas como comecei a trabalhar muito cedo, perdi pra concorrência. - Minha mãe respondeu, se considerando uma vítima do trabalho escravo infantil.

- A Bíblia é o livro que mais vende no mundo. Você deveria lançar uma nova versão dela. – Disse meu pai, em tom visionário.

- Não, não quero escrever uma nova Bíblia. Pelo menos, não agora.

- E você quer escrever sobre o quê? - Perguntou meu pai.

- Bom, não sei ainda, mas já sei o que quero ser. Um arquiteto não pensa em ser arquiteto já sabendo tudo que vai construir.

- É, mas um arquiteto ganha mais dinheiro que muito escritor. – Retrucava meu pai.

- Você não sabe nem escrever strogonoff. - Disse minha mãe.

- Posso não saber escrever, mas sei que é uma delícia.

- Pode tirar isso da cabeça, você ainda está na escola. – Continuou, tentando encerrar a conversa.

- Bom, na verdade eu gostaria de falar outra coisa para vocês. Não vou voltar mais para a escola.

Como eu ainda não tinha dinheiro para poder tomar essa decisão sozinho, acabei não ganhando a batalha da escola, mas eu sabia que eles não poderiam me forçar a cursar uma faculdade. E foi assim que, em menos de 24 horas, decidi como seriam, pelo menos, os 24 anos seguintes da minha vida. Apesar de ter repetido alguns anos no colégio, eu finalmente havia ganhado minha absolvição, havia sido inocentado desse crime de ser burro. E, como qualquer outra pessoa, estava cheio de sonhos, de viagens, queria conhecer pessoas novas, e principalmente gastar meus hormônios até não conseguir mais andar sem mancar. Mas eu não sabia que a minha família possuía planos diferentes para mim.

Talvez para não contrariar minha mãe, logo após terminar o colégio, meu pai havia me arrumado um emprego numa empresa de logística. O irônico é que justo eu, que nunca havia achado muita lógica em minha vida, agora deveria colocar em ordem e facilitar a vida dos outros.

Tudo começou com um erro. Como sempre começava. O mesmo maldito erro.

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Capítulo 2 | A bunda em forma de carreta

Já haviam se passado 10 anos desde o incidente da sopa, como minha mãe costumava chamar. Agora eu já estava fora da escola, sem ser escritor, em um emprego miserável, e o melhor: sem saber sobre o que escrever. E eu achando que não teria como ficar pior. 

A minha rotina enfadonha começa em torno das sete horas da manhã, quando minha mãe gentilmente me acorda aos berros para ir para o trabalho. Depois de tomar um banho e pegar alguma besteira para comer no caminho, chego religiosamente às sete e cinquenta na LEX, empresa onde meu pai havia feito questão de enterrar os meus sonhos. O dono da empresa era um cara novo, que deve ter ganhado a empresa de presente do pai e que com certeza foi cantor de ópera em alguma outra vida. Eu nunca tinha visto uma pessoa gritar tanto. Seu nome era Wagner – apesar de nunca chamarmos ele assim – e todos tinham que chamá-lo de senhor, podendo perder um tímpano caso não o fizesse. 

Apesar da pouca idade, Wagner apresentava um alto nível de excentricidade. A cada semana, possuía uma personalidade diferente, mas sempre com os mesmos gritos. Ele tentava imitar os grandes nomes do mundo corporativo. Chegou até a aparecer um dia com um topete de fazer inveja à Hebe Camargo. Alegava que sempre tinha usado aquele penteado, quando, na verdade, devia ter visto na noite anterior em alguma palestra do Donald Trump na televisão.

E lá estava eu, alguns anos mais novo que o tal Wagner e tendo que chamá-lo de senhor, coisa que raramente fazia com o meu próprio pai.

Eu trabalhava numa pequena sala com mais três pessoas. Alberto e Carlos eram praticamente da minha idade, mas já haviam vivido muita coisa. Isso se metade das histórias deles fossem verdadeiras, pelo menos. Alberto acabara de se tornar pai e Carlos estava em vias de se casar, enquanto eu apenas planejava todo o meu salário para mais uma ida ao bar ou, quem sabe, uma camisa nova.

Ângela era uma morena que tinha a maior bunda que eu já havia visto. Não que isso fosse uma coisa boa. Ela deveria pesar pelo menos uns duzentos quilos, dos quais cem deveriam ser só da maquiagem. Ela era a pior pessoa que poderia existir para trabalhar junto. Apesar de sua função ser a mesma que a nossa, sonhava com o dia que seria gerente do lugar, e desde então trabalhava como tal: fazendo porra nenhuma.

Lembro-me das visitas furtivas de Wagner ao nosso departamento e Ângela balançando aquele rabo enorme de um lado para o outro, como se realmente fosse difícil de notar. E tal qual um cachorro faz quando está com fome, ela avançava para cima de Wagner mostrando seus dotes excessivos.

- Oi, Wagner, tudo bem? – ela falava com uma voz de atendente de tele-sexo.

Wagner não dava a mínima, mas só pelo fato de não gritar já era um grande avanço. Depois que fizeram uma nova lei protegendo as mulheres, ele deve ter ficado com medo de ser preso, processado, ou de simplesmente ser esmagado por aquela bunda em forma de carreta.

Com o passar dos anos, eu fui me acostumando com o cotidiano da empresa. Nosso trabalho era bem simples: pegávamos algumas encomendas, passávamos em um leitor de código de barras, rastreávamos seus destinos e as separávamos dependendo do local para onde fossem. Eu só vim entender o porquê de fazer isso semanas depois. Não era um trabalho difícil, mas nem por isso se tornava um trabalho agradável.

Em todo fim de mês chegava o meu alívio. Depositado em notas de papel na minha conta corrente. Não era um alívio muito grande, mas pelo menos conseguia bancar minhas idas ao Bar 9, um local com uma grande história no passado, recanto de artistas e celebridades que haviam caído no esquecimento. Acho que por isso me identificava tanto com ele.

Da esquina, já se conseguia sentir o cheiro do bar. Era uma mistura de urina com fumaça, mas Charles costumava dizer que aquele era o cheiro da glória passada, agora apodrecida. Charles era o garçom do Bar 9, e um dos únicos amigos que eu tinha. Ele costumava dizer que o seu sonho era ser dono de um bar, mas como o destino pode ser mais cruel que ex-mulher, ele acabou virando garçom de um. 

Charles era um cara legal, devia ser uns cinco anos mais velho que eu, e costumava me vender cerveja fiado, mesmo sabendo que provavelmente eu não teria dinheiro para pagar. Ele dizia que os tempos eram difíceis demais para se encarar sóbrio. Um dos caras mais sábios que já conheci.

- Grande Charles, a cerveja tá gelada?

- Pequeno Serafim, chegou cedo hoje. – Ele respondeu, do outro lado do balcão, usando sua característica camisa do Iron Maiden e algum jeans velho.

- É, você sabe, a famosa dor de barriga da quinta-feira.

- Sei bem como é. Não existe remédio melhor do que uma bela cerveja gelada.

- Um dia, a medicina moderna vai concordar com a gente. Mas, enquanto esse dia não chega, vou me automedicando.

Entre uma cerveja e outra, as horas vão passando, e quando as prostitutas começam a chegar ao bar, percebo que já é mais tarde do que eu imaginava. O cheiro de urina e fumaça agora se mistura ao de perfume barato, mas o álcool ajuda o cérebro a deixar isso tudo passar despercebido.

- Charles, me dê duas cervejas e bote tudo na conta porque eu já vou embora.

- Por que duas?

- Não quero voltar pra casa sozinho. – Respondi brincando e me preparando para voltar.

Ao sair do Bar 9, a cidade parece outra, mas não muda para melhor. Ao cair da noite, as pessoas mudam completamente. As ruas estão tomadas por prostitutas e cafetões, que de longe observam suas mercadorias, e pequenos traficantes substituem as pessoas que mais cedo estavam a caminho do trabalho. 

Na calçada em frente ao bar tem uma mancha de sangue, que deve ter sido feita por um ladrão tentando assaltar alguém que estivesse de passagem ou simplesmente algum animal atropelado, provavelmente algum usuário de drogas. Enquanto bebo minha cerveja pelo caminho, algumas prostitutas tentam me vender seus corpos, mendigos me pedem dinheiro e pequenos meliantes me olham atravessado.

Eu mesmo já havia me tornado parte dessa paisagem. Era fácil julgar as pessoas que estavam por ali, mas eu não era muito diferente delas. Enquanto uns vendiam seus corpos e outros apodreciam suas mentes com drogas, eu havia desistido da minha alma e me encontrava ali, perdido, sem saber o real motivo de começar um novo dia.

Com o tempo, eu fui não apenas me acostumando com o cotidiano da empresa, mas também com aquela rotina. Eu conseguia dar destino às encomendas, mas não à minha vida. O sonho de viver como escritor estava mais distante do que o de ser milionário vendendo pipoca. Parecia que a minha piscina lotada de hormônios e sonhos tinha secado, ou que simplesmente haviam se esquecido de colocar cloro e qualquer mergulho nela seria perigoso.

Mas agora a minha principal preocupação era chegar em casa, deixar a cerveja fazer seu trabalho me adormecendo, e esperar que a ressaca estivesse de folga no outro dia.

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Capítulo 3 | Cerveja infernal

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