Escrava de Sangue

 

Tablo reader up chevron

Introdução - Sinopse

Grupo: www.facebook.com/groups/venenosimortais/
Jaylee sobreviveu à invasão aliegína na Torre Bawarrod, um antigo prédio transformado em feudo e comandado por Vampiros escravocratas. Quando sua mãe fica anêmica, Jaylee torna-se doadora em troca de alimento e remédios, mas cai nas garras de um terrível general com a fama de sugar até a última gota de sangue de seus escravos. Se quiser manter sua família à salvo, Jaylee precisa sobreviver o máximo de tempo. Começa um verdadeiro jogo de sedução no qual os papéis de caça e caçador se misturam

 

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 01 - Escassez

Capítulo 01 - Escassez

As pessoas começaram a correr e gritar antes que eu pudesse perceber o que estava acontecendo. Senti uma vibração estranha debaixo dos meus pés. Um ruído ultrapassou o som que saía dos meus fones de ouvido, como um avião que voa baixo demais.

Levantei a cabeça, os fios castanhos e enrolados voaram com a força do vento, tapando a minha visão. Segurei os cabelos e vi o que parecia uma cena de um filme de ficção científica: uma construção circular de metal branco voando baixo, atirando feixes de luzes multicores. Eu soube naquele instante que não era um sonho, algo terrível estava mesmo acontecendo, algo que ninguém acreditava ser possível: o mundo tal como conhecemos estava sendo invadido. Era o apocalipse.

— Mãe! — Eu fiquei em pé, puxando os fones e procurando onde estava minha família.

Avistei minha mãe e sua cabeleira loiro trigo de longe. Seu excêntrico vestido amarelo ouro flamulando com o vento, cobrindo parte da visão que eu tinha de Johin, meu irmão mais novo de dois anos. Corri até eles, alarmada, meu coração batendo forte e assustado. Mamãe estava com os olhos verdes arregalados de medo, travada. O carrinho vermelho de Johin andava sozinho sendo arrastado pelo vento.

Puxei meu irmão do chão, enlaçando sua barriguinha gorducha. Johin e minha mãe eram parecidos, cabelos cacheados loiros, olhos verdes acinzentados e ambos ficaram tão assustados que não foram capazes de se mover. Nunca fui destemida nem corajosa, era o tipo de garota que berrava agudo caso visse uma barata, mas naquele dia, não sei, algo em mim funcionou diferente. Uma espécie de instinto de sobrevivência.

Enquanto as pessoas corriam desesperadas sem saber para onde ir, tracei uma rota de fuga que me levasse para longe da confusão e dos disparos luminosos. Foi como estar em uma cena de um filme de guerra espacial, mas eu não queria ser daqueles figurantes que explodem e saem voando nos cantos da tela.

— Vamos sair daqui! — Gritei carregando meu irmão. Minha mãe andou pela grama com dificuldade, deu uma parada e eu me virei em tempo de vê-la tirar os saltos e sair correndo com eles nas mãos.

Senti as mãos dela em minhas costas. Mamãe sempre foi muito protetora.

— Por ali! — Minha tia Lilane, tão loira quanto minha mãe e incrivelmente parecida, apontou uma escadaria, as pessoas iam por lá. Ela, minha prima Nytacha e meu tio Donovan estavam passando as férias em nossa cidade.

— Não. — Tomei outro caminho.

Algo dentro de mim gritava em alerta e ao mesmo tempo me acalmava, concedendo-me a incrível habilidade de pensar direito ao invés de agir por impulso. Eu vi uma rota mais segura: subindo o morro.

— Vamos por ali!

Mamãe não discutiu. Talvez para ela qualquer lugar estivesse bom, desde que saíssemos do parque. Meu tio agarrou a mão de minha prima e a puxou para o mesmo caminho que eu.

Corri carregando Johin. Ele estava com o rosto vermelho, a boca como uma meia lua para baixo chorando assustado. Mamãe pisou numa pedra, machucando o pé. Parei para esperá-la e ela gritou, me mandando seguir. Minha tia agarrou no meu braço, puxando-me. Vi minha mãe curvar-se e colocar a mão no pé.

Pouco antes de chegarmos ao topo do morro, olhamos para trás atraídas por um forte barulho. A escadaria que não subimos estava sendo atacada, algo havia explodido bem ao meio criando um buraco. As pessoas gritavam. Dei graças a Deus por não estar lá.

Minha mãe nos alcançou e ordenou que não olhássemos para trás. Ela tomou Johin dos meus braços e continuamos a subir. Foi extremamente difícil para ela, sem sapatos. Minha tia estava de sandálias de praia, shorts e uma blusinha esvoaçante. Meu tio de bermuda e regata. Era um dia normal, em família. Para mim e para Nytacha, que tinha a minha idade, foi mais fácil: estávamos de tênis, calça jeans e camiseta.

Um grupo de homens estava na nossa frente, correndo mais depressa do que nossas pernas podiam ir. Tio Donovan puxou meu irmão do colo de minha mãe, ajudando-a, finalmente. Vi os bracinhos de Johin agarrados no vestido amarelo, como se estivessem sendo arrancados à força. Mamãe colocou a mão em sua cabeça, por cima do capuz do Batman.

No topo do morro vimos que não tinha saída: muitas naves brancas e circulares estavam explodindo lugares e coisas, a cidade estava em pânico, havia focos de incêndio. Helicópteros da polícia e jatos da aeronáutica já riscavam o céu e tentavam uma defesa. Um deles foi atingido por um feixe luminoso azul, rodopiou e caiu no meio do parque, em cima de pessoas e de obras de arte.

— Jaylee! Venha aqui. — Minha mãe me gritou, eu percebi que ela já estava adiante, no limite do morro, onde havia um grande barranco que dava para o fundo de alguns prédios. — Vamos pular!

Tive medo quando olhei para baixo. Vertigem, quando vi a distância que eu teria que cair. Os barulhos se intensificaram e eu percebi, bem ali, que eu havia perdido tudo.

 

***

 

Acordei assustada e empurrei o lençol fino que cobria o meu corpo. A luz alaranjada da manhã entrava pelas frestas da janela anunciando mais um dia no inferno conhecido como Torre Bawarrod. Quando eu e minha família nos abrigamos em um dos prédios próximos ao barranco, era para ser um esconderijo, mas acabou se transformando em nossa prisão.

— Beba isso, Anneth. — Vejo a silhueta de minha tia Lilane curvada sobre o colchão no qual dormia minha mãe, os cabelos presos em uma trança dourada e comprida arrastavam as pontinhas no chão. — Beba tudo.

— Mãe? Tia? O que houve? — Espanto o lençol e me sento, usando uma camiseta branca com manchas de café que tirei do lixo dos nobres há um ano atrás para usar de camisola.

Estranho sua presença, já que minha tia dificilmente entrava no nosso apartamento, a não ser quando era para partilhar alguma comida que mal sobrava em sua casa. Por cima do ombro, tento enxergar minha mãe, mas tudo o que vejo é que tia Lilane trouxe um suco de acerola para ela, desses de caixinha.

— Não se preocupe, Jaylee. — Minha tia fala suavemente, virando um pouco a cabeça para mim. Apesar de sua voz estar tenra, seus olhos estão preocupados e as sobrancelhas claras se juntam enrugando a testa. — Sua mãe só está um pouco cansada. Vá se trocar, você tem que ir à lavanderia trabalhar.

Confiro rapidamente Johin, deitado de bruços, ainda dormindo sobre meus pés. Nós dividimos o mesmo colchão e moramos agora em um pequeno apartamento, com a sorte de contarmos com um banheiro privativo e uma pequena área para cozinha. Regalias que minha mãe conseguiu com seu trabalho árduo.

— É anemia de novo? — Um arrepio percorre minha espinha.

— Não faça perguntas, vá se arrumar. Você sabe o que acontece se você se atrasar. — Tia Lilane passa a ordem com a voz dura.

Fico em pé, tendo agora uma ampla visão de mamãe deitada, puxando suco pelo canudinho. Minha tia segura a caixinha para ela. Os braços estão cheios de mordidas dos sanguessugas e ela ainda usa o vestido de seda azul celeste, seu uniforme de trabalho.

Tento não observar tanto quanto minha curiosidade deseja. Caminho até o banheiro e troco a camisola por meu uniforme de trabalho: calça jeans e uma regata roxa com um furo na barra. Precisarei costurar minha roupa depois, mamãe disse que faria quando voltasse do trabalho, mas pelo visto adoeceu.

Encaro meu reflexo no espelho. A visão que eu tenho nada se parece com a memória que tenho de mim na época em que eu era feliz, normal, ia para a escola, paquerava os meninos no pátio e ficava a tarde toda vendo desenho animado e cuidando de meu irmão.

Após três anos vivendo na Torre Bawarrod, eu já devia ter me acostumado com meu rosto magro e cansado. Abro a torneira. A água é escassa, cai pouca, mas o suficiente para eu me lavar no rosto e nas axilas. Escovo os dentes usando pouca pasta, passo uma escova pelos cabelos e calço meias grossas e galochas amarelas. Hoje em dia, posso considerar uma benção ter sapatos tão resistentes para calçar, mesmo que antigamente eu considerasse galochas algo fora de moda. Começamos a valorizar coisas diferentes quando perdemos a liberdade e o dinheiro.

— Estou indo. — Passo por minha tia.

— Tchau, Jay! — Johin acena, segurando seu copo e tomando leite. Minha tia ao seu lado, acariciando o seu cabelo. Mamãe está dormindo. Não ouso dizer nada, apenas aceno para meu irmão e abro a porta.

— Meu Deus, Jay, vamos nos atrasar. — Nytacha me espera encostada na parede do corredor e me lança o melhor olhar repreendedor que ela consegue fazer. Não é muito.

Nytacha é o tipo de garota suave, com rostinho de anjo. Ela puxou sua mãe em todos os traços: cabelos cor de trigo enrolados, olhos verdes como o mar e um sorriso bonito capaz de encantar todos os rapazes de Bawarrod. É um problema sério dependendo do setor, meu tio não a deixa caminhar sozinha pela Torre.

— Desculpe. — Dou de ombros. Fito seu bracelete posicionado no braço direito, um pouco acima do cotovelo.

É um simples bracelete prateado, liso. Tenho um igual. Representa quem somos: filhas das doadoras de sangue. Basicamente, nossos pais são comidas de vampiros.

Ah, sim, vampiros! Descobrimos com a invasão alienígena que não éramos os únicos habitantes do planeta. Enquanto nossas armas de fogo e bombas atômicas se provaram inúteis contra os aliens, os vampiros possuíam uma arma secreta capaz de dizimá-los: magia. Infelizmente, para um vampiro, usar magia acaba com sua energia vital e dependendo do tanto de seu esforço, ele poderá morrer caso não se alimente de sangue humano. Eis a equação que nos permite viver em total harmonia (ou quase) com os vampiros hoje em dia: nós somos comida!

Podemos viver em suas casas como seus criados enquanto os servimos, até que fatidicamente morreremos, afinal, ao contrário deles, somos mortais. Ao mesmo tempo, eles precisam de nós para sua própria sobrevivência e cuidam para que continuemos vivos, desde que possamos servir de alimento a eles.

Esse é o principal motivo pelo qual a minha família está tão entregue à desgraça: mamãe é a única doadora com um certificado entre nós, seu sangue costumava ser valorizado, mas três anos de doações acabaram com sua saúde e agora ela não consegue ceder tanto quanto antes, podendo fazer uma doação com muito esforço.

Os vampiros pagam pelo tanto que você doa e pelo seu tipo sanguíneo. Ter doenças como hepatite, tiram você do páreo. Ouvi dizer que uma família inteira foi abandonada do lado de fora dos muros da Torre à própria sorte quando contraiu uma doença dessas.

Ano passado, quando meu irmão contraiu pneumonia, nosso maior medo era o de ser expulso, mas mamãe buscou médicos e remédios para ele melhorar. Infelizmente, as contas ficaram pesadas, exigindo mais doações.

Depois que mamãe adoeceu, as contas ficaram apertadas e começamos a vender tudo o que tínhamos. Eu não sei como vamos fazer agora, o que pagam na lavanderia é muito menos do que precisamos e Johin ainda não tem idade para trabalhar. Pagar o aluguel é tão importante quanto comer, às vezes mais. Sem um lugar para ficar encontraremos a morte certa dentro do estômago de um alienígena, é o que dizem.

— Bom dia, Zhatit! — A voz suave de Nytacha corta meus pensamentos.

Ela acena para um dos guardas reais, um vampiro, que está todo coberto por uma armadura negra e um capacete. Os vampiros não falam conosco, normalmente, mas Zhatit sempre acena com a cabeça quando vê Nytacha passar, não sei até que ponto ele faz isso por simpatia ou com segundas ou terceiras intenções, pensando em cravar as presas nela; mas outro dia, Nytacha ganhou uma cesta de frutas e advinha quem mandou? Pois é, Zhatit. Acho que ele está demarcando território e quando minha tia Lilane liberar Nytacha para doações de sangue, ele será o primeiro da fila.

— Eu não sei como você sabe que é ele. — Murmuro cobrindo a boca com a mão, no instante em que passamos pela porta da lavanderia.

— É muito simples. — Nytacha abre um sorriso.

O cheiro de sabão cutuca minhas narinas de forma incômoda. Um ardor simples, que dá vontade de espirrar, mas não causa o espirro em si. Muitos jovens da nossa idade trabalham por aqui, há bastante roupas para lavar.

— Ela deve reconhecer o volume no meio das pernas dele. — Byrn passa os braços nos meus ombros e nos de Nytacha, abraçando-nos ao mesmo tempo. Ela é uma garota mais alta e mais robusta do que nós.

— Eu nunca faria tal coisa! — Nytacha fica com o rosto todo vermelho de vergonha e se adianta para o tanque.

— Byrn, não a provoque assim! — Coloco as duas mãos na cintura e analiso minha melhor amiga.

Ela tem os cabelos bem escuros e curtos como os de um menino. No pescoço, uma gargantilha de renda cobre o que eu acredito ser mais uma mordida de seu mestre. No início do ano Byrn começou a doar sangue para ajudar nas despesas de casa, ela faz isso uma vez por mês. É o tempo médio saudável para alguém conseguir doar sangue. Noto que sua calça jeans é nova, com certeza ela está aproveitando bem o dinheiro que recebe.

— Só estava brincando. Sei que sua prima ainda é intacta.

— Não sei dizer se você está falando da virgindade ou do fato de que ela não fez nenhuma doação.

— Ah, não tem muita diferença, doar sangue é como fazer sexo. Você até tem um orgasmo! — Byrn dá uma larga risada divertindo-se, os músculos do pescoço forçam-se contra a renda negra. — Você devia tentar um dia desses.

— Minha mãe simplesmente não me permite. — Eu me aproximo do tanque, Byrn fica do meu lado, foi assim que nos tornamos amigas.

Abro a torneira e deixo a água gelada e límpida jorrar até encher. O trabalho na lavanderia é muito leve. Nada como cortar cabeças de galinhas, arar a terra, temperar ferro para armas ou, ainda, faxinar os aposentos dos nobres. Ficamos com as mãos cheirosas e macias, limpas e digamos que alguns de nós aproveitam para tomar um belo banho, já que em nossas casas temos muito menos água do que as torneiras daqui.

— Se ela continuar doente, talvez você não tenha muita escolha.

— Eu sei. — Puxo uma calça dourada do cesto de roupa e afundo na água do tanque.

— Além do mais, você já tem idade para ser uma doadora, é besteira não começar logo. Pagam mais quando você é nova.

— Pois sempre que digo que quero ajudar, ela diz que sou nova demais para isso. Já foi difícil convencê-la de me deixar vir para a lavanderia.

— Olhe para isso, queria ter um vestido assim. Aposto que este é de Lady Lucretia! — Byrn se curva por cima do tanque, puxando um vestido negro e vermelho do cesto.

Analiso o vestido, bordado com fios dourados e renda, um pano impecável. Até consigo imaginar Lady Lucretia vestindo-o, mas não sei se cabe nela.

— Os seios dela não cabem ai! — Dou uma risada.

— Ela amassa, para ficarem mais redondos aqui em cima. Mais sexy. — Byrn passa as mãos em seus seios, simbolizando. — Uma vez eu a vi no jardim à noite durante um festival no salão de festas e preciso dizer que ela é linda como um anjo. Pálida como a lua, cabelos negros como o céu da noite e os olhos brilhantes como as estrelas!

Byrn é uma entusiasta, antes de nossa vida mudar, ela era viciada em Crepúsculo.

— Dizem que ela vai se casar em breve. — Ederlon se intromete na nossa conversa. Ele está no tanque ao lado de Byrn, é um rapaz alto, porém magro para trabalhos braçais e foi designado para a lavanderia. Ele é um pouco mais novo que eu, mas bem mais alto.

— Às vezes, me sinto de volta aos castelos feudais. Vampiros tem esse lance todo estranho e antigo de reis, rainhas e princesas. — Resfolego, puxando a calça dourada para cima e para baixo na água ensaboada.

— Eu acho lindo. — Byrn suspira — Mas pelo que ouvi dizer, Rei Bawarrod quer casá-la com o general.

Tanto eu quanto Ederlon paramos com nossos afazeres e lançamos a mesma expressão de nojo para Byrn.

— Com o “Glutão”? — Ederlon é o único com coragem de verbalizar todo o seu horror. Seus olhos castanhos escuros se abrem bastante e seu nariz comprido acentua o momento cômico.

— É, com o Glutão. Uma vez, lavei uma de suas fardas depois de um festival e estava muito suja de sangue, entre outras coisas, uma lambança.

 “Glutão” é o apelido que o general tem por essas bandas, dizem que ele come como um porco e mata todos os seus escravos, sugando-os até a última gota. A descrição se assemelha a de um monstro sem autocontrole.

— Coitada. — Ederlon suspira.

— Menos conversa e mais trabalho! — A supervisora da lavanderia logo chama nossa atenção. Ela é humana como todos nós, mas trabalha em um cargo maior já que seu marido é escravo de sangue de um dos nobres.

Acho que vocês já entenderam como o fator sangue é importante por aqui. Minha mãe costumava servir a dama de honra da rainha, mas mais recentemente ela doa aleatoriamente para os guardas, se tiver sorte. Pagam pouco, seu sangue é ralo.

Depois da bronca, trabalhamos como animais. Meus dedos ficam enrugados e meus braços cansados. Quando meus ombros não aguentam mais, ouvimos o gongo para o intervalo e nos juntamos todos no jardim para comer. Ao contrário dos vampiros, podemos ver a luz solar e fazemos isso bastante, para nos lembrar o tempo todo que somos diferente deles.

Servem marmitas para nós, arroz e frango. É a única hora em que eu consigo comer alguma coisa. Enrolo a coxa de frango num guardanapo e guardo no meu bolso esquerdo bem escondida. Não pretendo comer depois, mas levá-la para Johin e minha mãe.

— Aqui, peguei para você. — No meu campo de visão entra uma suculenta maçã bem vermelha. 

Grupo: www.facebook.com/groups/venenosimortais/

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 02 - Decisão

Capítulo 02 - Decisão

— Oba! — Byrn estica a mão para pegar a minha suculenta maçã.

Em pé na minha frente, fazendo sombra no sol, Lyek ergue a fruta sobre seus cabelos negros, desviando-se dos dedos longos de Byrn. Ele é o mecânico e um dos meus amigos mais antigos aqui dentro.

— Não seja impertinente, Byrn! É para Jaylee. A mãe dela está precisando. — Sua voz suave arranha meus ouvidos e faz meu coração acelerar.

— Obrigada. Nem sei como agradecer. — Estendo as mãos com as palmas para cima e ele me dá a maçã. Minhas bochechas pegam fogo!

— Oh, eu posso pensar em muitas maneiras. — Byrn debocha, me dando duas cotoveladinhas de leve.

— Não precisa agradecer, só não deixe ninguém ver. Tirei da cozinha, enquanto minha mãe estava ocupada. — Lyek se joga na grama, apoiando o corpo pelo cotovelo.

Ele é um rapaz bonito, alto e forte. Sei que não sou a única garota da colônia que repara em sua beleza e também já o conheço o suficiente para saber que não há um interesse por trás da maçã, caso você esteja imaginando isso. Lyek simplesmente ajuda todo mundo que pode, é um rapaz de bom coração e uma das poucas pessoas a nos fazer acreditar na esperança de um futuro justo novamente.

— Obrigada. — Fito a maçã e dou graças a Deus por ter conseguido mais alguma coisa hoje. Posso ficar sem jantar, mas minha mãe e meu irmão precisam ter o que comer.

Nytacha ataca o seu frango com voracidade e Lyek abre sua marmita, destampando-a. O cheiro de frango atiça minha fome, mas me contenho. Enquanto meus amigos terminam de comer, guardo a maçã no meu sutiã, como um terceiro peito. Se nos pegam roubando comida, seremos açoitados.

— Amanhã à noite haverá um baile, muitos nobres virão de outros castelos. — Lyek avisa. Ele é sempre informado, pois acaba tendo que fazer turno à noite para guardar os carros.

— Mas que droga! E eu doei sangue ontem! — Byrn bate a mão na testa.

Minha mãe também. O desespero se abate sobre mim. Mais uma chance desperdiçada. Eu a ouvirei reclamar de suas escolhas. Mamãe se cobra demais por não poder dar a mim e a meu irmão uma vida mais decente. Se ao menos eu pudesse participar do festival como doadora...

— Como faz para doar sangue? — Pergunto.

— Você tá pensando em doar? — Os olhos verdes de Nytacha recaem sobre mim e eu fico roxa.

— Talvez eu não tenha outra escolha e preciso de dinheiro. — Abaixo a cabeça, abraçando minhas pernas e me encolhendo. Repouso a testa nos meus joelhos.

— Por que não tenta uma vaga em outro lugar antes? — Lyek segura na minha mão.

Ergo um pouco a cabeça, olhando-o. Seus olhos azuis me fitam com intensidade em todas as suas nuances. Acabo fixando os olhos em uma mancha de graxa em seu queixo protuberante.

— Onde tem vaga? — Carregada de interesse, a voz de Ederlon soa mais fina. Todos sempre estamos interessados em ganhar mais. — Tá sabendo de algo?

— Não.

Todos murcham, com a falta de uma vaga melhor que a lavanderia.

— Só queria dizer que Jaylee pode tentar outra opção antes de pensar em doar sangue. — Ele acrescenta com a voz entristecida, os olhos na marmita.

Fica um silêncio esquisito depois disso. Todos nós sabemos que Lyek não está se referindo exatamente à mim, mas à sua irmã Elenore. Ela não resistiu ao primeiro ano de doação. É muito comum jovens adoecerem, ou descobrirem algum tipo de doença… só espero que esse não seja o meu destino, ou não terá adiantado de nada.

Fico observando em como Lyek segura errado o garfo, suas mãos grandes e pesadas estão sujas, o extremo oposto das minhas.

— Não existe a opção de não doar. — Ederlon de repente corta o silêncio. — É assim que é a Lei. Se ninguém da família puder doar, terá que ser você, Jay.

— Eu sei. — Suspiro.

Tenho pensado nisso ultimamente e já estou bem exausta de ver mamãe pálida e quase morrendo por tentar salvar a família da miséria. Sou quase adulta e devia fazer algo para ajudar minha família.

Mais uma vez soa o sino e é hora de voltarmos para o trabalho. Nytacha rói o osso rapidamente, Lyek engole o arroz. Fico em pé, bato a terra de minhas roupas e confiro se todas as comidas estão bem escondidas. Nytacha é a primeira a se encaminhar de volta para a lavanderia, Byrn é a segunda.

— Até amanhã! — Ederlon acena, se afastando.

— Até. — Eu faço menção de segui-lo.

— Espere, Jay. — Lyek me segura no braço.

— O que foi? — Giro e o fico encarando, seu rosto parece sério, preocupado.

— Estava guardando para levar para casa, mas acho que você precisa mais que eu. — Com um sorriso, ele remexe no bolso de trás da calça e retira uma cenoura.

— Tem certeza? Não quero abusar e você já fez bastante por mim hoje.

— Guarde na perna. — Ele pega a minha mão e me faz segurar a cenoura, insistindo para que fique comigo.

Não é uma cenoura grande e já está sem as folhas, mas acredite, não vemos cenouras sempre e qualquer comida a mais, na minha atual situação é bom. A ajuda de amigos nos momentos difíceis é uma benção, meus amigos são meus anjos da guarda.

— Obrigada! — Tenho vontade de chorar. A fome me deixa emotiva, acho. Lyek limpa a lágrima que teima em rolar pela minha bochecha com os dedos, segura o meu rosto e me dá um beijo na testa.

— Cuide-se, Jay.

— Você também. — E por fim, eu me viro, caminhando até Byrn, que ainda me espera na metade do jardim.

— Eu não sei, acho que Lyek gosta de você. — Byrn cruza os braços e estreita bem os olhos, analisando.

Por cima do ombro, vejo Lyek correr até as escadas que dão para a garagem do prédio, onde fica a oficina e todos os carros dos nobres. Ele acena com um sorriso encantador para uma garota da cozinha e desce.

— Somos como irmãos. — Nego.

Tantas meninas mais bonitas e melhores de vida por aí, ele não se interessaria por mim. O que Lyek tem é pena. Eu me abaixo para guardar a cenoura dentro da meia, na minha canela. Fico em pé e remexo os pés, torcendo para que ela fique bem segura.

— Sei não. — Byrn balança os cabelos curtinhos de um lado para o outro em um grande “não”.  — Você não acha ele um pedaço de mau caminho?

— Lyek é um gato, mas ele olha para mim como a irmãzinha faminta que ele precisa salvar. Você sabe, transferindo o trauma de Elenore para mim. — Começo a caminhar de volta para a lavanderia.

— Talvez ele pense em te pedir em casamento! Seria uma forma de te salvar da fome e da doação de sangue. — Ela vem atrás animada com suas teorias malucas.

— Eu teria que abandonar minha mãe e meu irmão à própria sorte. Você realmente acha que eu faria algo assim? — Cruzo os braços ofendida.

Byrn resfolega e coloca a mão comprida em meu ombros esquerdo. Ela joga seus olhos castanhos com firmeza em cima de mim:

— Escute aqui, nem pense que você está sozinha, ok? Se quiser, eu vou com você até a seção de doação e ajudo a preencher o formulário. Até seguro a sua mão quando você for levar a injeção para coleta de sangue.

— Coleta? — Viro para ela em susto.

— Os exames iniciais. — Byrn explica pacientemente. — Para saber se você é saudável o suficiente para doar, essas coisas. Sem isso, você não consegue o certificado.

— Tudo bem. — Eu concordo. — Depois do jantar, me encontra na Ala B.

— Combinado.

***

Na hora de estender as roupas que lavei no grande varal do último andar, uma fumaça negra saindo da chaminé principal do prédio chama a minha atenção. Paro com um pregador na boca, segurando um vestido azul turquesa na mão, já pensando que os ataques alienígenas alcançaram a fronteira de Bawarrod.

— Morreu alguém. — Ederlon olha para o mesmo lugar que eu. — Quem você acha que foi dessa vez?

— Felix. — Uma garota, Sarah, também da lavanderia que explica. Ela é bem magrinha, tem cabelos ruivos e olheiras pesadas. — Era meu vizinho. Os médicos deram a morte dele hoje pela manhã.

— Não era escravo do Glutão? — Nytacha se estica por entre um lençol.

— Ele mesmo.

— Quanto tempo ele durou? — Ederlon pergunta.

— Um ano. Talvez um pouco mais. Deixou uma fortuna para a família. — Sarah balança a cabeça afirmativamente. — O Glutão paga muito bem.

— Mas a que preço? Não vale a pena perder a vida por dinheiro. — Nytacha não se conforma.

Eu não digo nada e continuo estendendo o vestido, mas a verdade é que já penso diferente. Se você está sem saída e já está fadado a morte de um jeito ou de outro, é grandioso se sacrificar para salvar aqueles que você ama. Pensando nisso, faço uma silenciosa oração para que a alma de Felix descanse em paz.

***

Entro em casa e as coisas estão um caos. Johin está chorando de fome e eu o silencio com a coxa de frango. O aperto no meu coração me dá mais certeza ainda de que preciso me inscrever na seção de doação.

Não deve ser tão ruim assim, o Glutão é mesmo um cara problemático, mas acho que apenas os desesperados correm até ele, há outras opções: os guardas do rei, as damas de companhia da rainha, os artistas e especialmente os novos hóspedes, que pagam bem para "jantar fora". Com um certificado de doação, posso me oferecer do lado de fora da festa.

Cozinho a cenoura com um pouco de água, coloco no prato com um pouco de arroz que tia Lilane trouxe e entrego junto com a maçã para minha mãe, que está sentada na cama, observando Johin brincar com um dos poucos brinquedos que não vendemos. Volto para a cozinha, bebo a água em que cozinhei a cenoura ainda quente e retorno para a sala. Agora, Johin ganha garfadas do jantar da minha mãe.

Sem dizer nada, caminho novamente até a porta. Tenho que me encontrar com Byrn na Ala B. É nesse momento que escuto a fraca voz de minha mãe romper o silêncio do apartamento:

— Espere, onde você vai? Acabou de chegar.

Com a mão na maçaneta, permaneço de costas.

— Vou encontrar Byrn na Ala B antes que anoiteça. Vou até a Seção de Doação preencher um formulário.

— Não, Jaylee! — Mamãe protesta.

— Como não, mãe? — Eu viro para ela, cruzando os braços. — Você está péssima, não vou esperar a situação se agravar. Você ainda tem que criar Johin.

— Vem aqui minha filha, vamos conversar antes de tomar uma decisão precipitada dessas. — Vejo-a enfraquecida, sem conseguir se levantar, a mão erguida.

— Conversar o quê?  Já vendemos tudo o que tínhamos, o que sobrou?

— Podemos deixar o apartamento para outra família, alguns pagam bem pela oportunidade. — Ela comprime os lábios ressecados. Posso ver as saliências de seu rosto como crateras na lua, a magreza acabou com sua beleza.

— E para onde vamos? — Dramática, coloco as mãos para cima.

— Você e Johin iriam para casa de sua tia e eu arrumaria alguém.

Ninguém se interessaria por uma mulher moribunda que não pode ajudar e é apenas mais uma boca para ser alimentada, não faz sentido. A impressão que tenho é que ela vai morrer e está se preparando para isso. No que depender de mim, isso não acontecerá tão cedo.

— Amanhã os nobres de outros castelos virão.  — Em um fôlego só, solto a informação. Os olhos dela se enchem de lágrimas, percebendo que desperdiçou sua doação ontem. Isso me parte o coração. — Você já fez demais, mãe. Agora é a minha vez.

— Jaylee! — Ela me chama e eu viro as costas, abrindo a porta.

Grupo: www.facebook.com/groups/venenosimortais/

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 03 - Vantagem

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 04 – Vestido Perfeito

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 05 - A sociedade dos Vampiros

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 06 - Serpente

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 07 - Au-au!

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 08 - As nove Casas

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 09 - A mancha da desonra

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 10 - Ataque

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 11 - Lições aprendidas

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 12 - Peças do Tabuleiro

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 13 - Menino de Ouro

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 14 - Obediência

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 15 - O coração do Imperador

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 16 - Beijo proibido.

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 17 - Laços de sangue

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 18 - A marca

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 19 - Jogadas

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 20 - Transporte de carga

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 21 - Refúgio

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 22 - Chamas

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 23 - Planeta mutante

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 24 - O fim do mundo

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 25 - Tempos de desesperança

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...

Capítulo 26 - Ganhar ou perder

Comment Log in or Join Tablo to comment on this chapter...
~

You might like Mariana Sgambato's other books...