Escrito em Linhas Tortas (Sebo da Esquina #1)

 

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Introdução - O Sebo da Esquina

┼ Introdução - O Sebo da Esquina

Eles dizem que os demônios vivem na encruzilhada, mas o que eles não sabem é que existem vários tipos de encruzilhadas, algumas em “Y”, algumas em “T” e outras em “K”. Não importa, com o ritual correto o destino é sempre o mesmo: O Sebo da Esquina.

Ele tem uma porta pequena, em estilo marroquino, a madeira pintada de verde claro envelhecido. Na fechadura cabe apenas uma chave e está sempre trancada, porém o cheiro de sândalo escapa pelas frestas, convidando a um local mágico.

Em cima da porta um letreiro velho e vermelho ilumina o nome do local, simplesmente “Sebo da Esquina”, sem a menor pompa. É um local que não oferece medo a primeira vista, mas ninguém se atreveria a entrar sem possuir um convite.

Ele possuía. O garoto com a chave barroca de bronze nas mãos. Respirou fundo, girou a chave duas vezes na fechadura e destrancou a porta. Um pequeno sino anunciou sua chegada no momento em que ele abriu a porta. Plim.

O interior do sebo não tinha livros, não era nem um sebo! Ali dentro havia uma aconchegante sala de estar. As paredes eram cobertas de papel de parede floral e havia um espelho oval com moldura dourada na parede. Os lustres pendurados no teto eram castiçais dourados com velas acesas tremeluzindo. No meio de tudo, um tapete felpudo branco jogado por cima do assoalho de madeira escura. Um sofá de estofado bordô de dois lugares com almofadas verdes com franjas douradas, estava simetricamente disposto com duas poltronas combinando. Na mesa de centro, com pés de arabescos, um candelabro segurava uma vela branca. Uma xícara de chá estava descansando ao lado do candelabro feita de porcelana verde com as bordas douradas,  o cheiro de ervas do chá infestava o local misturando com o cheiro do sândalo já intimamente impregnado à sala.

Ela estava lá, dizia se chamar Madame Daisy, mas seu verdadeiro nome era outro, que pertencera uma vez a uma deusa mitológica e outra vez à uma poderosa demônio. Qualquer um que a olhasse entretanto, duvidiaria disso. Ela aparentava ser uma jovem asiática beirando os vinte anos, de cabelos curtos, olhos negros que brilhavam com um vermelho sobrenatural e sua pele era tão pálida quanto a de um defunto, mas era muito bonita. Usava um vestido verde escuro que possuía um quê de vitoriano, grudado ao corpo magro e curvilíneo, em seus braços finos, muitas pulseiras douradas. Parecia uma cigana perdida em uma época antiga.

Ao ver o jovem entrar Madame Daisy não pareceu surpresa, pois já o esperava. Seus olhos sobrenaturais fixos no garoto, suas delicadas mãos repousadas no colo. O gato preto que estava em seu colo porém pulou dali assim que a porta abriu e foi roçar-se aos pés do visitante.

- Seja bem vindo, querido. – Madame Daisy disse lançando um meio sorriso que não mostrava os dentes. O interior de sua boca era negro como a noite, um buraco vazio capaz de engolir almas. Sua voz, entrentanto, era suave e adocicada, sedutora.

O garoto permaneceu ali em pé com os olhos azuis voltados para baixo, onde o gato preto estava, olhando de volta para ele. Não era um garoto alto para sua idade, era magrinho e estava com o uniforme da escola: calça preta, camisa branca e gravata verde escura como o suéter. A jaqueta em estilo militar por cima do uniforme e os coturnos em seus pés denunciavam seu estilo. Seus cabelos eram escuros, quase negros, sua pele alva e ele tinha um rosto bonito e de formato oval.

- Miau! – O gato fez para ele.

Como se acordasse de um transe, o garoto retirou rapidamente da bolsa carteiro que trazia transpassada ao corpo um livro pequeno como um desses blocos de notas, de capa vermelha com detalhes dourados. Estendeu na direção da mulher, sem se aproximar ou ousar erguer os olhos contornados de delineador preto para ela.

- Eu não aceito devoluções, querido. Eu já informei isso a você. – Madame Daisy deu uma pequena risadinha, cobrindo a boca com a mão representando ser uma menininha tímida. – É um presente que te dei!

- Não posso continuar com isso. – Ele soou em desespero e ergueu o olhar celeste para ela. – Eu tentei… mas nenhum bem sai do que escrevo!

- Tsc… – Ela resmungou. Seu sorriso murchou e seu rosto tomou uma expressão preocupada. Estendeu a mão, as pulseiras fizeram barulho quando se agruparam no cotovelo. – Venha aqui, querido. Sente-se, tome um chá… e me conte o que aconteceu.

- Não quero chá! – O garoto recusou energicamente. – Eu quase matei alguém hoje… eu… eu tentei jogar esse livro fora, mas ele sempre volta pra mim e por isso eu vim aqui, devolver essa… essa coisa pra você! – ele jogou o livro no chão de forma malcriada.

O livro se arrastou até os pés descalços de Madame Daisy, enquanto ela o acompanhou com o olhar. Em segundos, sumiu de seus pés. O rapaz abriu a bolsa de novo e tirou de lá o livro.

- Não o quero! Fique com ele, por favor?

Madame Daisy suspirou vencida, mas não se levantou. Ela pegou a xícara da mesinha e as pulseiras tornaram a fazer barulho quando ela se mexeu. Deu um gole em seu chá de ervas bem devagar, sorvendo só um pouquinho. Soltou a xícara no mesmo lugar de forma paciente, em movimentos minuciosos e olhou novamente para o garoto, que continuava com a mesma expressão em desespero.

- Desculpe, querido. Não existe a possibilidade de me devolver, ele agora é seu. Eu te falei que dentro do livro mora um Jinn! Esse tipo de espírito quando capturado, não abandona sua alma, te servirá para sempre. – Madame Daisy falou calmamente. O garoto estava quase se desfazendo na sua frente, mas Madame Daisy não mudou de expressão.

- Você disse que um Jinn é um espírito guardião, mas esse só traz coisas ruins!

- Eles são espíritos guardiões, mas como você, meu bem… eles possuem livre arbítrio.

- Mas não o quero mais… eu estou cansado disso! Eu… não quero mais…

- Você não precisa usá-lo se não quiser… é provável que ele se interesse por outra pessoa se você o ignorar, querido. – Madame Daisy deu de ombros de forma desinteressada.

- E ele irá com outra pessoa?

- Irá.

- Oh. – Pareceu obvio, mas o garoto não tinha sequer pensado nessa possibilidade. – Assim, simplesmente?

- Simplesmente. – Madame Daisy estendeu de novo a mão. – Vem aqui, querido, sente-se comigo e tome um chá. – o garoto hesitou e ela teve que insistir. – Venha, venha…. eu tenho um novo presente para você.

- Por quê? – Ele soou desconfiado de seus presentes.

- Eu gosto de você.

- Não gosta, não. Se gostasse não me daria um livro desses que só faz o mal!

- Por acaso o Jinn fez mal a você? Ele saiu do livro e te machucou? – Perguntou com um meio sorriso, viu o garoto comprimir os ombros. – Não fez, não é mesmo? O que te fez mal foram as consequências daquilo que você desejou… se não está contente com os resultados então você tem que aprender a desejar direito.

- E você vai me ensinar a desejar direito?

- Já estou ensinando. Venha. Não quer saber qual presente vou te dar?

Ele continuou parado por um momento, hesitante, decidindo o que faria. Por fim, guardou o livro dentro da bolsa e caminhou até Madame Daisy. Segurou em sua delicada mão gélida. Ela o fez sentar ao seu lado e deu dois tapinhas nas costas de sua mão. Conferiu que ele usava um anel em forma de um crânio de corvo, feito de prata que ela havia presenteado, para proteção.

Assim que o garoto sentou, o gato preto subiu em seu colo e se aninhou em suas roupas. O garoto não evitou lançar um sorriso ao felino e acariciar seus pelos macios. Era um sorriso genuino, bonito com dentes grandes.

- Veja só, ele gosta de você! – Madame Daisy observou. – Por isso que vou dá-lo para você, assim você não vai se sentir tão sozinho… – Ela segurou no queixo do garoto fazendo um carinho.

- Eu queria… mas meu pai não vai me deixar entrar em casa com um gato. – Ele informou e rapidamente tirou o gato de cima do seu colo.

- Esse ele vai deixar. – Madame Daisy falou com convicção. – Você sabia que muito antigamente os gatos eram considerados sagrados?

- Eram? – Abriu os olhos de forma vislumbrada, interessado na história.

- Eles trazem sorte a quem os tem!

- Dizem que gato preto dá azar.

- Não dá azar, mas é que eram comumente associados à maus espíritos… os gatos possuem forte ligação com o mundo daqueles que já se foram… e aqueles que já se foram e ainda vagam pela terra normalmente não são bons. – Explicou. – Vamos, escolha um nome para ele e será seu!

O garoto calou-se, pensou um pouco e por fim, falou:

- Lord Byron.

- Lord Byron. – Ela repetiu satisfeita porque ele aceitou seu presente. – Ele estará sempre com você, como eu também estarei, querido.

Eles dizem que os maus espíritos as vezes se atraem por humanos de sentimentos intensos em suas almas… mas o que eles não sabem é que alguns desses maus espíritos, ou demônios, desenvolvem um interesse tão forte quanto uma obsessão.

 

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Capítulo 01 - Júlia e o Cenobita

┼ 01 - Julia e o Cenobita

Julia levantou a cabeça e olhou para a janela aberta, por onde entrava a agradável brisa da noite. Um gato de pelos longos tão negros quanto o céu e olhos amarelos brilhantes estava em cima do parapeito, invadindo seu quarto.

– Miau.

– Seja bem vindo, pequeno visitante! – a garota ficou em pé aproximando-se do felino. Fez carinho em seu pelo macio, remexeu no pescoço dele em busca da coleira de couro  e leu o nome na placa. – Lord Byron, huh?

– Miaaaaaaaaaau! – ele fez de novo, um miado longo e grosso. Era como se respondesse a ela.

– O que você quer, gatinho? – ela colocou a cabeça para fora de sua janela. O vento balançou seus cabelos ondulados cor de café e jogou uma mecha por cima de seus olhos redondos, da mesma cor.

Julia passou os dedos pela mecha e a prendeu atrás da orelha com um leve movimento, tinha as mãos delicadas e elegantes, os dedos finos e compridos de unhas bem feitas com esmalte roxo.  Notou que as casas da vizinhança não ficavam muito juntas, os lotes eram grandes, separados por jardins bonitos, mas o gato poderia ser de qualquer uma delas! Olhou de novo para o felino, ele parecia ser saudável e até um pouco gordo.

– Hm, deve estar com fome, talvez?

– Miau!

– Pois bem, vou buscar uma tigela de leite para você! – afastou-se da janela e saiu do quarto, descendo as escadas rapidamente.

Pulou as caixas de papelão da mudança que ainda não haviam sido abertas, como se mudara há pouco tempo, a maioria das coisas permanecia encaixotada. Seu chinelo vermelho se prendeu na ponta de uma caixa de papelão escrita “QUADROS”, soltando do pé direito. Resmungou e o calçou de novo. Atravessou a sala e entrou na cozinha.

Sua mãe estava na cozinha e assustou-se assim que a viu entrar. Isabel era uma bonita mulher de pele clara e olhos bem redondos e grandes como uma boneca de porcelana, feição que Julia puxou como uma réplica quase exata, não fosse pelo fato de que sua mãe tinha olhos cor-de-mel e ela olhos negros como duas pedras de ônix. Sua mãe estava tomando seu chá noturno, de camisola branca e suéter amarelo, segurando na mão a xícara colorida, procurou esconder as lágrimas que jorravam do seu rosto.

– Ei mãe, tem um gato na minha janela! – Julia falou animadamente, fingindo que não tinha visto sua mãe de olhos chorosos. Era sempre assim desde que o divórcio de seus pais acontecera, sua mãe vivia chorando.

– Gato? Você diz um menino? – Isabel procurou se recompor, endireitando a voz.

– Não, gato. Um felino que faz “miau”. – a menina abriu a porta da geladeira e ajeitou a regata preta por cima do short vermelho de ginástica. Usava uma meia listrada de branco e preto que ia até o joelho. – Posso dar leite para ele?

– Se você prometer que amanhã esse gato vai estar bem longe do seu quarto, pode.

– Bom isso depende dele, você sabe! Gatos são animais muito independentes que fazem o que querem. – Julia explicou, pegando um Tupperware de plástico transparente da prateleira acima da pia. Encheu o recipiente com leite.

Passou pela porta da cozinha indo na direção do seu quarto quando sua mãe avisou, fazendo-a parar de andar:

– Não demore a dormir que já são onze horas e amanhã você tem aula! – avisou.

– Preciso mesmo ir? – Julia perguntou da porta, virando-se rapidamente para vê-la. A voz saiu choramingosa, fazendo gracinha.

– Claro que precisa! – Isabel continuou bebendo seu chá, lançou um olhar de reprovação daqueles que apenas mães conseguem dar.

Julia deu-se por vencida com um suspiro e voltou todo o caminho para seu quarto só para constatar que Lord Byron, o visitante, havia ido embora. Deixou o Tuppeware em cima do parapeito da janela, caso ele voltasse.

Dirigiu-se à sua cama, sentando-se por cima do seu edredom lilás. Pegou o seu netbook cor-de-rosa e olhou para o chat com que conversava com Gabi, sua amiga. Digitou que precisava desligar o computador, pois sua mãe havia dito para ela dormir e Gabi enviou um “te vejo amanhã”.

~*~

– Feliz aniversário! – Gabi abraçou-se com Julia tão forte que a esmagou, na porta do colégio pela manhã.

Gabi era a melhor amiga de Julia, tinha lente nos olhos para que eles ficassem azuis há tanto tempo que ninguém lembrava qual a cor natural. Usava os cabelos alisados em corte reto, tingidos de vermelho e na altura dos ombros. Era uma menina magra e baixinha que ficava nervosa muito facilmente, mas que tinha um sorriso genuíno e sincero.

– Obrigada! – Julia sorriu sem muita alegria, não achava que tinha motivos para comemorar com todas as coisas ruins acontecendo em sua vida.

– Dezesseis anos! Já tá na hora de avançar para a fase dois com o Arthur! – Gabi estava com um pirulito de morango na boca, daqueles em forma de coração, ela sempre tinha pirulitos daquele tipo na bolsa!

Julia fingiu mais um sorriso. Como ia chegar na fase dois se não tinha nem raspado na fase um? Arthur era amigo de infância e participava do time de basquete da escola, lindo, perfeito e… tinha namorada: Aparecida. E agora que Julia havia mudado de bairro, eles nem eram mais vizinhos!

– Ih, que foi? – Gabi notou que a amiga estava com ar desapontado.

– É que você fala como se o Arthur fosse meu namorado e ele não é.

– Ele era seu vizinho e te dava carona na volta para casa todos os dias. – Gabi retrucou como se isso fosse sinônimo de namorar. – E vocês se conhecem desde sempre!

– O que faz de nós amigos, não namorados.

– Dá no mesmo! – Gabi revirou os olhos como se fosse dona da verdade, raciocinando uma lógica que só fazia sentido em sua própria cabeça.

– Como foi o fim de semana? – Julia preferiu forçar uma mudança de assunto.

– O mesmo lixo de sempre! – Gabi ajeitou a sua mochila branca rabiscada com canetinhas coloridas nas costas, os chaveiros com símbolos de suas bandas favoritas balançaram. Tirou o pirulito da boca para falar.  – Fiquei de castigo, meu namoro quase acabou!

– Isso eu sei, mas você não me contou por que ficou de castigo! – Julia a lembrou.

– Meu pai me pegou transando com o Nando no meu quarto domingo! Dá pra imaginar a confusão que foi?

Essa era Gabi, uma louca e desvairada, mas também a única garota do Colégio São Valentim que não se incomodava com o fato de que Julia era uma perfeita looser. Julia se sentia uma perdedora e fazer dezesseis anos não tornava as coisas mais fácil, de fato, só piorava tudo!

– E como se resolveu? – Julia quis saber.

– Não posso usar o telefone depois das nove, não estou com meu celular e o Nando não entra mais no meu quarto. Vou ter que dar um jeito de dar umas escapadas aqui da escola..! – colocou o pirulito na boca.

– Ai, Gabi, você não toma jeito mesmo!

– A vida “com jeito” é muito sem graça! Prefiro as aventuras! – Gabi logo retrucou.

Com pressa, rumaram para a sala. No corredor a coordenadora media com uma régua a distância entre o joelho e a ponta da saia das meninas, ou da gola da camisa branca ao pescoço. O colégio tinha um uniforme rigoroso: saia preta ou calça preta, camisa branca e gravata verde escura do mesmo tom do suéter verde escuro que tinha brazão amarelo do colégio bordado no canto esquerdo. O Colégio São Valentim já não tinha mais a sua glória de antigamente, era agora apenas um colégio com uma proposta de disciplina rígida.

Aproximaram-se da porta da sala. A placa ficava em cima da porta, “Classe D” e alguém escrevera “errotados” de caneta preta ao lado. Ninguém sabia desde quando estava lá, mas estava e estivera desde o início do ano letivo. Ninguém reclamava, porque achava que era verdade mesmo!

Ao entrarem na Classe D, Gabi e Julia foram para o canto que ficava perto das janelas, onde normalmente sentavam.

– Olha, comprei um tênis novo! – por cima da cadeira colocou a perna para Julia ver seu novo Allstar preto, estendeu a cartela de hidrocor para a amiga. – Assina! Desenha algo bonito.

– Não sei o que desenhar.

– Qualquer coisa, Jujuba, qualquer coisa! Senão vou dar pro Nando assinar primeiro e você vai perder o posto de maior importância. – como se fosse realmente muito importante.

– Tá bem. – Julia por fim pegou a cartela de hidrocor e desenhou uma rosa com espinhos encaracolados na ponta branca do tênis.

– É bonito, vou até tatuar! – Gabi falou brincando, pois se aparecesse com uma tatuagem em casa seria expulsa!

Antes que ela pudesse responder, Nando chegou. Deu um selinho na namorada e se jogou cansado na cadeira ao lado de Gabi, morrendo de sono, porque ficava sempre varando a noite jogando algum RPG multiplayer no computador. Era um rapaz bonito, de cabelos castanhos claros jogados no rosto de forma despojada, mais alto que Gabi e muito magro.

– Bom dia Nando. – Julia o cumprimentou com um sorriso. Achava que Nando e Gabi eram perfeitos um para o outro, eles já namoravam há quase um ano e se conheceram na escola ano passado.

– Boa noite, Jujuba. – ele caiu por cima da cadeira e começou a roncar, não literalmente, mas queria dormir. Nando era o tipo de aluno que passava a aula inteira dormindo e só levantava se o professor ameaçasse dar uma advertência para ele levar para casa.

Na Classe D os professores não se importavam com os alunos, deixavam a bagunça rolar e depois se vingavam passando os trabalhos mais rigorosos, mais difíceis e as provas mais cabulosas. Sobreviver até o fim do ano e passar raspando era uma técnica avançada de guerra!

Depois de assinar os tênis novos de Gabi, Julia resolveu abrir o seu caderno e desenhar. Ela fazia cada dia um desenho novo, às vezes se a hora se arrastava demais, podia desenhar até três! Julia desenhava o tempo todo, adorava e era uma boa artista, um talento que ela tinha e que não sabia de onde vinha. Em toda a sua família Julia era a única que gostava de desenhar.

O fato de gostar de ouvir músicas intensas com guitarras e vocais líricos, de ler livros de fantasia e ter mais interesse em arte do que qualquer outra matéria fazia de Julia uma esquisita no meio de seus familiares. Sua imaginação fértil demais era um problema… e ai se dissesse que ia até a casa de Nando jogar RPG com o amigo e Gabi! Fazer cosplay nos eventos de anime, então, era um crime. Isso foi suficiente para seus pais a considerarem uma garota problemática e a jogarem no Colégio São Valentim… o que no fundo era uma grande sorte, já que lá ela conheceu os melhores amigos que podia ter!

Não era que o colégio fosse todo de anormais, mas havia uma separação por notas e perfil que criava alguns estereótipos. Na Classe A, por exemplo, ficavam os nerds com smartphones ligados na internet e que participavam do clube de matemática ou de física concorrendo a medalhas, fazendo intercâmbio e disputavam bolsas internacionais com as notas mais altas!

Na Classe B ficavam os atletas e rainhas de fotolog, onde estudava Arthur e Aparecida, tinham notas boas (mesmo que não tão boas quanto os alunos da turma A) e eram em sua maioria patricinhas, mauricinhos, metrossexuais e grupos mais interessados em pagar de “geração saúde” ou “bons filhos”.

Na Classe C ficavam os alunos medianos, que não eram nem bons nem ruins, que não tinham ideias brilhantes mas também não envergonhavam seus pais, eram invisíveis na escola e em maior número do que as outras classes, daqueles que quando crescem e saem da escola se tornam profissionais medianos em empresas medianas e sofrem para pagar as contas sem dívidas no fim do mês; Gabi, Nando e Julia os chamavam de “normais”.

Depois vinha a Classe D, já citada; e por fim a Classe E. Os “Especiais”, para não dizer retardados, onde a maioria era composta de alunos com problemas de aprendizado bem graves e lerdeza cerebral causada pelo excessivo consumo da maconha e outras drogas. Na Classe E tinha um aluno de vinte anos, que provavelmente repetiria o ano novamente porque ficava bêbado todo dia e faltava demais, era uma classe formada por sete alunos e eles eram muito unidos!

Já sentados na classe enquanto o professor gorducho de bigode entrava para a monótona aula de química, Gabi virou para Julia, com o pirulito na boca.

– E aí, como foi a mudança?

– Está uma zona lá em casa, a maior parte das coisas encaixotadas.

– E algum vizinho gatinho? – ao dizer isso, Gabi acariciou os cabelos de Nando de forma delicada.

– Não conheci ninguém, ficamos bem ocupadas com as coisas. Conheci só um gato, – e a cara de alegre que Gabi fez forçou Julia a se explicar. – um felino, um gato preto, sabe? Invadiu meu quarto ontem a noite.

– De algum vizinho gatinho? – Gabi como sempre, interessada unicamente nisso.

– Não, de algum vizinho gótico. O gato se chama Lord Byron, dá pra acreditar?

– Oh-Oh. – Gabi congelou, arregalou os olhos e tirou o pirulito da boca. – Não me diga!

– Não te diga o quê?

– Relôu! – Gabi estalou um dedo na frente de Julia fazendo-a piscar os olhos negros. – O seu vizinho só pode ser o Pinhead!

– Quem?

Gabi recolocou o pirulito na boca novamente com um suspiro e segurou com as duas mãos a cabeça de Julia, virando-a para o outro lado da sala de forma que seu olhar bateu em… Bruno. O cenobita das trevas que habitava sua classe. Ele era um garoto que nunca falava nada, mas que sempre chamava atenção por conta do seu visual das profundezas.

O uniforme escolar parecia mais despojado só porque era ele que estava vestindo. Por cima do suéter, mesmo em dias de calor, ele usava uma jaqueta preta de poliéster com botões de pressão prateados e fivelas nos ombros que lembrava uma jaqueta militar. Sempre calçava coturnos militares, tinha vários anéis de prata nos dedos, unhas pintadas de preto, braceletes de couro com spikes e o apelido de Pinhead não era porque ele era careca e sem sobrancelha, até porque ele tinha os cabelos bem negros como petróleo e lisos que caíam por cima de seu rosto simétrico e de pele alva, mas porque ele tinha muitos piercings no rosto.

Bruno era bonito, Julia achava, especialmente por causa de seus olhos azuis contornados por sombra preta e os lábios… devia ser proibido que garotos tivessem lábios como aqueles! Mas era só, porque ele era muito esquisito, do tipo que todo mundo para de falar ou se mexer apenas para ver passar, não porque admira e sim porque tem medo. Os piercings eram assustadores, Julia nem gostava deles, mas talvez pela esquisitice crônica, faziam Julia ficar imaginando como ele conseguiria falar, comer ou beijar com três argolas penduradas (uma de cada lado e uma do meio). Talvez ele não conseguisse, por isso não falasse nada! Ele tinha também uma ferradura negra no septo, o que dava a impressão de estar com dois mosquitos, ou algum inseto nojento por dentro do nariz que tentava desesperadamente escapar. Entre os olhos, duas bolinhas prateadas no bridge. Só em uma olhada, ela já contara cinco piercings! Que tipo de pessoa consegue achar legal se furar tanto assim?!

– O quê, a Jujuba é vizinha do Pinhead? – Nando ergueu a cabeça e abriu os olhos interessado, segurou o rosto com uma das mãos, mas ficou ainda com as costas curvadas, largadão.

– Shhh! – Gabi fez colocando um dedo em vertical na boca pedindo segredo. – Não espalha, se ele escutar pode resolver invadir o quarto dela em forma de morcego!

– Para com isso, gente, nada a ver. – Julia espantou os corvos daquela ideia como um verdadeiro espantalho. Com os cantos dos olhos, espiou Bruno mais uma vez. Ele estava com os fones de ouvido desligado do mundo, olhando para lugar nenhum, fingindo prestar atenção na aula, mas sem convencer ninguém. Era do tipo de aluno que nem tirava o caderno da mochila

– Pensa bem, Jujuba, quem mais por aqui teria um gato chamado Lord Byron? – Gabi perguntou e tirou o pirulito da boca mais uma vez. – Pensa bem!

– Não pode ser qualquer outro gótico na cidade? Quem disse que é ele que mora lá perto? – Julia contestou a teoria maluca de sua amiga ruivinha. Afinal, seria muita coincidência!

– Legal, né, vocês vão poder voltar para casa juntos! – Nando devaneou como se fosse a coisa mais legal do mundo.

– Tá no mundo dos sonhos, Nando? – Gabi deu um tapa na cabeça do namorado e ele sorriu com toda a paciência do mundo para ela. – Vai ser um queima filme!

– Se quiser eu falo com ele!

– Você fala com ele? E desde quando ele fala?

– Bem, não pessoalmente… ele joga no mesmo horário que eu. – Nando deu de ombros. – E ele é “debuffer”. Vocês têm noção de como um bom “debuffer” de damage control é raro hoje em dia?

– Não, não sei. – Gabi se impacientou e enfiou o pirulito na boca irritada. Videogames era uma coisa que ela detestava em Nando, porque achava que ele preferia jogar do que levá-la ao cinema, e talvez ele preferisse mesmo. – E quem foi que disse que o Pinhead é o dono do gato?

– Eu tenho a senha dele. Advinhem qual é? – e levantou duas vezes as sobrancelhas juntas para enfatizar bem qual era a senha. As duas garotas o olharam embasbacadas. – É…!

– Prove. – Gabi tirou o pirulito da boca em um movimento dramático. Cruzou os braços, segurando o pirulito em uma das mãos com cuidado para não grudar em seu suéter. Nando olhou para ela sorrindo, totalmente vitorioso. – Vai, anda, prove.

– Posso fazer ele vir até a gente e falar com a Jujuba… mas o que é que eu vou ganhar com isso?

– Sexo? – Gabi encolheu os ombros se oferecendo.

– Isso eu tenho de graça, vai ter que ser algo melhor! Algo memorável! – ele se indireitou na cadeira, coçou um dos olhos castanhos. Gabi ficou esperando a proposta inicial. – Eu estava pensando em algo como, você não reclamar quando eu não te responder no MSN porque estou jogando… por… um mês.

– Uma semana é o máximo. – ela virou a cara pro outro lado fazendo pose irritada.

– Feito. – e com muita calma ele pegou o celular prateado do bolso da calça, digitou uma mensagem de texto com um sorriso bobo e depois guardou.

Quase em mesmo instante Bruno se mexeu na cadeira e tirou o celular do bolso da jaqueta, contemplando a mensagem que recebeu. Nenhuma mudança de expressão, ele apenas guardou o celular de novo no bolso, sem nem responder. Dava para ser mais esquisito do que isso? Qualquer pessoa normal teria no mínimo virado para Nando! Julia até sentiu um arrepio percorrer suas costas. O garoto dava medo!

– O que você escreveu? – Julia quis saber.

– Que se quiser o gato dele de volta, tem que vir falar com você e pagar o resgate! – respondeu sorrindo.

– Você é doido? – Gabi deu mais um tapa na cabeça de Nando.

– Ai!

– Ele pode… sei lá, devorar a alma dela por causa disso!

– Não exagera, Gabi. – Julia tentou acalmar os ânimos da amiga, que quase gritava na sala de aula. Ainda bem que Bruno usava sempre fones de ouvido, ou teria escutado o histerismo de Gabi.

– É sério Julia, sabe o que dizem dele por aí? Que ele tem um pacto com Satã!

– O que, obviamente, é um boato do pessoal da turma B, de babacas! – Nando defendeu o colega de jogatina noturna. Ele não gostava do pessoal da turma B e deixava isso claro sempre que virava as costas quando Arthur se aproximava de Julia no final a aula para oferecer a carona. Virou para Julia que estava com os dois olhos bem abertos. – De fato, são só boatos.

– É bom que o seu “debãmer”–

– “Debuffer”. – Nando consertou a namorada.

– Tanto faz! É bom que ele não entregue para ela um daqueles cubos satânicos!

– De qualquer forma, eu não estou com o gato dele de refém. – Julia sentenciou e depois, virou para Nando. – E não quero que ele me dê carona.

– Vou dormir. – Nando abaixou a cabeça por cima dos braços, enquanto Gabi nervosamente mordeu o seu pirulito.

~*~

Momentos antes de morder a sua maçã diária, Julia congelou no tempo e espaço ao ver Bruno, bem na sua frente, com os olhos azuis em cima dela.

– Então… – ele falou calmamente, causando um choque não só nela, mas em Nando e Gabi que até pararam de se beijar. Sua voz era calma, nem tão grossa e nem tão fina, tinha uma leve rouquidão e não variou de tom. – Meu Gato.

Julia ergueu o olhar, com a maçã na frente do rosto, seus olhos foram passando pela gola da camiseta do uniforme, afrouxada revelando um pedaço de uma corrente prateada no pescoço, depois o queixo e os lábios perfeitos. As argolas negras encostavam-se ao lábio superior deixando-os um pouco abertos e secos. Ele falou através daquelas argolas, com uma dicção perfeita!

Por fim ela mordeu a maçã, escapando daquela boca estonteante e subiu os olhos para encontrá-lo com um olhar glacial e penetrante sobre ela. Era assustador!

– Seu gato? – ela deu de ombros, fingindo não saber do que se tratava.

– Lord Byron. Janela. Seu quarto. – ele enumerou com a voz sem hesitar, articulando cada palavra de cada vez e cada sílaba em mesmo tempo, de uma forma ultra paciente.

Julia ficou um tempo sem responder, olhando para ele sem quebrar o contato visual. Estava analisando-o, lendo seus movimentos, observando. Ele desviou o olhar e comprimiu os lábios. Insegurança, talvez? Pela primeira vez, ela pensou que ao invés de indiferença ao contato social ele poderia ser apenas… tímido.

A garota podia sentir os olhares de Gabi e Nando em cima deles, totalmente curiosos com a conversa. Era melhor aliviar um pouco a tensão daquele instante, antes que Bruno virasse as costas e fosse espetar um boneco de vodu de cada um deles!

– Seu gato… – articulou bem o que ia falar, para não parecer tão prolixa diante da monossilabidade do rapaz. Ele voltou com os olhos glaciais para cima dela, mas dessa vez, ela até viu um brilho de esperança. – Invadiu o meu quarto ontem, desci para pegar um pouco de leite e quando voltei, ele tinha ido embora. Não voltou para sua casa?

– Ele fugiu… de novo. – Bruno ainda esperou que Julia falasse algo, mas como a menina permaneceu calada, ele virou-se para sair. – Obrigado mesmo assim.

– Não espera! – ela segurou na manga da jaqueta dele, fina como uma capa de chuva.

Bruno assustou com o toque, como se tocar nele fosse um tipo de crime. Ele passeou com o olhar pelas mãos na menina, depois levantou os olhos glaciais para ela. Assustada, a garota o soltou imediatamente, com medo de que ele fosse soltar fogo pelos olhos e transformá-la em uma pilha de pó!

– Se ele reaparecer, eu aviso você. – Julia acrescentou.

– Certo.

– Ah que fofo, fico feliz que vocês se entenderam! – Nando se meteu entre eles, passando os braços por cima dos ombros de ambos, meio que em um abraço grupal. Apertou os dois contra si demonstrando todo o seu contentamento e olhou para Bruno. – Agora por que você não oferece para a dama uma carona na volta para casa, já que são vizinhos? O que me diz? Hein?

– Certo. – Bruno respondeu. Nem se deu ao trabalho de convidar. Afastou-se do braço de Nando e colocou os fones, andando para longe.

– Não acredito em você! – Gabi deu um tapa no ombro de Nando, quando ele voltou para perto dela. – E se ele a sequestrar? Matar ou esquartejar?

– Você não leva essas suas teorias a sério, leva? – Nando perguntou. Ela fez biquinho, ele sorriu e por fim, se beijaram.

Julia revirou os olhos, segurando vela. Mordeu mais uma vez sua maçã.

~*~

Quando o sinal bateu e os alunos ficaram em pé, Gabi articulou sem voz algo como “me liga depois”, em um misto de curiosidade e preocupação, fazendo um gesto com a mão perto da orelha simbolizando um telefone. Nando passou o braço por seus ombros e a afastou dali.

Julia ainda estava se decidindo se ia aceitar a carona e entrar no carro de um completo estranho quando viu Bruno na porta esperando por ela. Aproximou-se, mas eles não trocaram nenhuma palavra, até porque ele estava de fone! Ele foi na frente, guiando-a.

Julia o analisou enquanto andava: a bolsa de carteiro que ele usava era muito excêntrica como tudo nele! Transpassada pelo peito, caia para trás, era preta, mas tinha uma teia de aranha um tanto torta desenhada a mão com tinta vermelha, alfinetes cruzados, uma corrente prateada fina que balançava conforme ele andava e um chaveiro de um gato preto no zíper aberto do bolso da frente. Pelo visto, ele curtia mesmo gatos! Foi nesse momento que ela percebeu a ponta do que parecia um pequeno livro de capa vermelha e imaginou se colecionava livros em miniatura.

– Ei, Julia? – uma voz familiar a chamou.

Atraída pelo som, a garota girou os sapatos e encontrou com Arthur sozinho no corredor, isto é, milagrosamente sem Cidinha. Arthur era um garoto bonito, com cabelos claros e levemente avermelhados com fios que batiam no ombro, seus olhos castanhos grandes e expressivos. Por ser atleta, seu físico era o de um deus grego, com ombros largos e braços torneados! Julia teve que segurar um suspiro.

– Oi, Arthur. – falou de forma contida.

– E aí? Como foi o fim de semana? – ele perguntou com um sorriso, ajeitando a mochila azul e preta nas costas. O uniforme da escola ficava perfeitamente alinhado nele. – O lance da mudança, rolou?

– É, rolou.

– E como estão as coisas na casa nova?

– Está uma bagunça com tantas caixas, mas em breve nos acertaremos

– E a casa? É legal? Tem piscina, né?

– É enorme! Nem sei o que vamos fazer com tanto espaço…! – ela passou as mãos pelo cabelo, daquele jeito que as meninas sempre fazem quando querem enviar sinais. Não tinha como evitar, Julia no fundo esperava que ele a convidasse para ir de carona com ela, mesmo que depois tivesse que pegar um ônibus para voltar para casa.

– Ah, que isso, aposto que daqui um tempo não vai sobrar espaço! – Arthur comentou sorrindo de um jeito que o coração de Julia esquentou. – E a piscina?

– Tuti? – Cidinha apareceu no corredor tão atrapalhada com seus livros que acabou derrubando dois no chão. Ela era uma garota linda de doer, com olhos cor-de-mel e cabelos castanhos claros compridos e perfeitamente lisos, magra como uma modelo. Era tão linda que dava nojo.

Arthur era um ótimo namorado, atencioso, por isso ele correu para ajudá-la com os livros pegando-os do chão e carregando para Cidinha. Eles trocaram um selinho romântico e deram as mãos. Passaram por Julia.

– A gente se vê. – Arthur falou com um sorriso quando passou.

Julia os observou andar juntos, até que eles sumissem no corredor, o olhar repleto de chateação. Arthur nem lembrou que era seu aniversário!

– Vai ficar aí parada? – Bruno perguntou, parado no corredor esperando por ela.

Aqueles olhos glaciais, sem expressão e desprovidos de emoção causavam um efeito quase magnético em cima de Julia, ela quase perdeu o equilíbrio e, para não parecer uma boba, forçou um sorriso comprimindo os lábios para cima. A única coisa que Julia conseguia pensar era que, babando em cima de Arthur, já tinha feito um papel mais do que idiota!

Ele tornou a andar sem falar nada ou fazer qualquer expressão em resposta ao sorriso tonto da menina. Julia o seguiu. Saíram juntos pelo pátio e atravessaram o portão da escola. Bruno tirou do bolso interno do casaco um chaveiro de morcego. Parou do lado de uma bicicleta de mountain biking equipada, de marca cara. Tinha até extensores no guidom.

Para sua surpresa, Julia constatou que a carona que ele lhe daria, era de bicileta! Só podia ser brincadeira, né? Ele não tinha nem garupa!

O garoto subiu na bicicleta após retirá-la do gancho em movimentos automáticos repetidos todos os dias. Olhou para Julia e viu que ela falou algo com ele, mas por causa dos fones de ouvido que berravam em volume máximo, ele não escutou. Tirou o fone esquerdo puxando pelo cabo, já na certeza de que ela fosse reclamar alguma coisa:

– O quê?

– Você não tem garupa. – ela reclamou torcendo o pé, inquieta. O vento chacoalhava seu cabelo cor de café. – E nem capacete.

– Por acaso está com medo? – ele perguntou só pela graça, tinha certeza que a garota riquinha de brincos de ouro não achava o veículo apropriado. – Você senta aqui no cano, outro dia coloco a garupa se você fizer questão.

– Uau, mais de três palavras, fico lisonjeada. – ela levantou as sobrancelhas surpresa. Ele havia dito aquelas palavras de uma forma que queriam dizer algo como “vou te dar carona outro dia”, ou foi só impressão? – Você sabe andar, não é? Não vai me derrubar?

– Isso é relevante? – ele ajeitou a bolsa de carteiro para trás e ficou esperando, um pé no chão o outro na pedaleira. Que garota fresca! Revirou os olhos.

– É muito relevante. Não quero me machucar! – Seria um milagre se ele não a derrubasse com aquelas botas, Julia analisou. Aproximou-se para sentar no guidom, quando Bruno puxou a mochila dela de repente, colocando-a em suas costas.

– O que você tanto carrega? – a mochila pesava toneladas!

– Meus livros e… hm… alguns materiais.

– Materiais?

– De desenho. Eu gosto de ficar desenhando na classe. – ela explicou enquanto ele afrouxou a alça da mochila para que ficasse mais confortável.

– Vem. – ele avisou que estava pronto. Julia se sentou no cano, com as pernas para a esquerda. – Coloca os pés aqui nessa parte para não se machucar.

Ela fez como ele pediu, descansando os pés no outro cano que segurava os pedais. Sentiu o ombro dele roçar contra o dela, quando ele segurou o guidom, em uma proximidade quase íntima. Julia colocou as duas mãos na base do guidom para se segurar e ele pedalou. A princípio a bicicleta cambaleou, até ele se acostumar com o peso extra. Mais uma vez ela sentiu o corpo dele contra suas costas, mas sem peso, só encostando e esquentando-a… era confortável. Por causa do vento criado pela movimentação os cabelos de Júlia caíram em seu rosto, ele afastou com a mão esquerda e a bicicleta jogou-se bruscamente para a direita.

– Aaah! – Julia gritou, mas rindo ao mesmo tempo. Juntou os cabelos e os jogou por cima de um ombro. – E então, o que você tanto ouve? – ela perguntou. O fone de ouvido dele estava pendurado na gola da jaqueta, ligado, uma música suave escapava. O outro, estava em seu ouvido, porque ele estava escutando.

– Depende do dia. – respondeu ao recobrar o movimento da bicicleta corretamente.

– Agora, por exemplo?

– Uma banda chamada The Knutz.

– Não conheço.

– Acho que não faz seu tipo.

– E o que você acha que faz meu tipo, posso saber?

Ele encolheu os ombros e jogou a cabeça para trás, tirando os cabelos dos olhos aproveitando o vento causado pela velocidade da bicicleta.

– O que faz seu tipo? – Bruno perguntou pela incapacidade de adivinhar.

– Cradle of Filth. – ela respondeu. – E coisas do tipo.

– Sério? – A voz denotava uma surpresa, como se fosse algo interessante o que ela tinha dito, Julia adorou ouvir. – Talvez você goste de uma ou outra música… talvez.

– Você por acaso é do tipo que pensa que todo mundo e diferente de você? – arriscou perguntar, mas torceu para ele não tirar um tridente de fogo da bolsa de carteiro e espetar nela com raiva.

– Não exatamente, – ele demorou-se a dizer porque estava escolhendo as palavras. – julgo com definitiva certeza que sou diferente.

– Talvez você seja. Talvez não. – Julia arriscou mais uma vez e antes que ele pudesse se ofender, completou. – Mas diferente é interessante. – ele não respondeu. – Posso ouvir?

– Pode. – aproveitando que a rua era larga e reta, ele tirou a mão do guidom e puxou um dos fones para ela.

Julia analisou o objeto, era um fone in-ear e ela não queria usar se tivesse caquinha, mas estava limpo. Colocou o fone e uma voz suave de um homem estava cantando uma música sinistra, chegava a ser triste e bonita, mas a voz era de certo modo melancólica.

– Qual o nome da música? – ela quis saber.

– The Hanging Man.

– É diferente.

– Hm.

Julia ficou em silêncio, escutando a música. Sem querer, a perna de Bruno arrastou na sua, amassando sua saia, mas ela não ligou, envolta com as melodias que ouvia de sonoridade muito singular e envolvente. Era engraçado, pois imaginara que Bruno fosse daqueles chatos que só escutaria música clássica lendo poemas escritos por poetas mortos!

A bicicleta jogou para a esquerda e eles entraram em uma rua que Julia reconheceu como sendo a da sua casa.

– Qual a sua casa? – ele perguntou cortando o silêncio em que se encontrava.

– 735. – Julia informou.

– Sério? Eu moro na 733. – isso queria dizer que eles moravam lado a lado!

Julia ficou impressionada, a casa de Bruno era uma enorme casa branca de seis quartos, três andares e que tinha até uma entrada com um pequeno jardim de flores na porta!

– Eu me mudei esse sábado. Você deve ter visto um caminhão de mudanças, não viu?

– Não estava em casa… – ele respondeu. Parou a bicicleta na frente da casa dela, amarela de dois andares e sacada de madeira. – Está entregue! – anunciou. Ela riu. – Viu, sem quedas, tombos ou machucados.

– Obrigada. – ela desceu da bicicleta e tirou o fone. Ele entregou a mochila para ela. – Amanhã se você quiser carona, minha mãe sempre me leva ao ir trabalhar.

– Alguém tem que levar a bicicleta para podermos voltar. – respondeu.

Julia sentiu o coração dar três batidas de uma só vez. Peraí, ele estava dizendo que ela ia voltar com ele amanhã também?

– Se estiver tudo bem para você… – ele percebeu que ela havia aberto os olhos e a boca em uma clássica expressão de espanto.

– S-sim, tudo bem. – quase engasgou para falar, sem conseguir decidir se estava feliz ou surpresa, ou ambos!

– Certo. Até amanhã. – ele se preparou para sair.

– Espera! – mais uma vez ela o segurou pelo casaco, ele repetiu o mesmo ritual de se assustar e erguer os olhos azuis aos dela, quase como se fosse proibido que ela o segurasse. Julia o soltou colocando as duas mãos para trás como se fosse uma menininha de três anos que levou bronca da mãe. – Não quer entrar? É meu aniversário e tem bolo… de chocolate!

– Eu… não posso. Estou de castigo.

Ela fez uma cara curiosa.

– Obrigado, mesmo assim. Feliz aniversário. Até mais. – ele falou depressa e se afastou.

Julia suspirou. Ao menos Bruno havia sido simpático o suficiente para até lhe desejar parabéns! Suspirou. Era seu 16º aniversário e com sorte, a única companhia que teria seria o gato preto de Bruno, caso ele invadisse o seu quarto novamente.

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Capítulo 02 - Erros na Matrix

┼  02 - Erros na Matrix

Os bigodes de Lord Byron pinicaram seus dedos. Bruno fez carinho nos pelos negros de seu gato, que estava deitado em cima da cama, o gato virou de barriga para cima, procurando por mais carinho. Mas era hora de sair.

– Sem fugir, ok? – Sussurrou.

– Miau.

– Shhh! – Bruno pegou sua bolsa carteiro do chão e passou pelo corpo. Buscou pela chave da bicicleta e que estava em cima do criado mudo, guardando-a no bolso da jaqueta junto com seu celular.

Foi até a porta do seu quarto e a abriu silenciosamente, pegou do chão seus dois coturnos e sem calçar, pisou no corredor do terceiro andar. Debruçou no parapeito de madeira, olhando para baixo, percebendo a casa em completo silêncio, com as luzes apagadas. Desceu as escadas devagar o suficiente para não fazer barulho, mas rápido o suficiente para não demorar muito no processo, até chegar ao hall da casa. Andou até a porta e colocou a mão na maçaneta prestes à sair.

Quando pensou que havia alcançado a liberdade ileso, uma pesada mão segurou em seu braço, apertando firme e puxando-o fazendo girar involuntariamente. Seu pai, Carlos, um homem alto e forte como um touro, o abraçou. Carlos estava fedendo à embriaguez, o bafo de uísque envelhecido escapava por sua boca em um hálito azedo.

– Meu Deus! Eu estava tão preocupado! – O homem chacoalhou Bruno segurando em seus ombros, agora seus olhos derramavam lágrimas de arrependimento. – Eu que fiz isso em você? – soou arrependido vendo um hematoma na testa de seu filho.

Qual seria a resposta mais adequada? “Não, foi a mesa que veio voando até a minha cabeça”? Ou ainda, “sim, você é um monstro!” para ver Carlos se desmanchar na sua frente como algodão molhado. Mas como havia grandes chances de que Carlos se aborrecesse e cedesse um olho roxo, preferiu permanecer calado.

– Me desculpe! – O homem quase suplicou. Apertava a mão ao redor dos braços de Bruno de forma tão brusca que o machucou. Bruno tentou se soltar, mas Carlos o segurou ainda com mais força, prendendo-o como uma cobra que espreme sua vítima em um abraço mortal. – Quando sua mãe voltar vai ficar tudo bem! – falou exasperado.

Aquelas palavras ditas em um momento de desespero eram mais vazias do que as garrafas de uísque que ficavam em cima da mesa do escritório de Carlos. Bruno sabia que sua mãe não voltaria nunca!

Já fazia mais de um ano que ela os abandonara, cansada de servir como saco de pancadas para o marido. Era uma sensação horrível ser deixado para trás por sua mãe, largado e esquecido junto àquele homem infeliz! Sempre que seu pai surtava, agora era Bruno quem pagava o pato. No início procurou revidar, mas só piorou. Aprendeu que tinha de ficar quieto e no fundo, se achava merecedor daquilo… ah, certamente merecia!

Foi de repente que Carlos o soltou. Fungou o nariz e secou os olhos com as mãos. A visão de um homem fragilizado nada condizia com seu dia a dia.

– É melhor você ir para a aula, ou vai se atrasar. – O homem tateou os bolsos em busca de sua carteira de couro. – Tome, para você comprar um lanche. – Estendeu uma nota de cinquenta reais.

Cinquenta reais. Era o preço que valia o hematoma na sua testa! Bruno não hesitou, pegou o dinheiro e guardou no bolso da sua calça preta. Carlos já voltava para dentro do escritório e naquele pequeno instante de alforria, Bruno rompeu pela porta de casa.

Foi quando se permitiu respirar, quase aliviado por escapar ileso naquela manhã, mas seu estômago revirava, denunciando o nervosismo.

Ligou os fones ao som do rock sombrio de Faith and the Muse. Em sua bicicleta, pedalou para longe, chegando na escola primeiro que todos.

~*~

Gabi abriu um pirulito de coração e colocou na boca rapidamente enquanto andava pelo pátio de mãos dadas com o namorado:

– E então, o que ele falou para você? – Perguntou para Nando.

– Nada, ele não falou nada. – Nando deu de ombros. – E por que a curiosidade? Você já ouviu a história toda pela Jujuba!

– Por isso mesmo, quero ouvir o outro lado da moeda. – Gabi explicou. – Até porque a Jujuba está com o julgamento alterado e totalmente fora de noção ao insinuar que o cara, de fato, possa vir a ser legal!

– Eu não disse legal. Eu disse que ele é…. interessante. – Julia escolheu bem a palavra que ia usar, já antecipando o chilique que Gabia ia dar.

– Viu só? – Gabi ergueu as sobrancelhas para Nando, enfatizando que Julia estava falando asneiras.

– O que você vê de tão errado assim nele? – Nando estava quase ofendido, irritado. Parou de andar. – Sério, eu queria saber qual o motivo da implicância!

– Não é implicância.

– É sim, Gabi, é sim! – Nando insistiu.

– Não é implicância, eu tenho meus motivos.

– Tipo? – ele ergueu uma sobrancelha e cruzou os braços. Nando ficava uma graça fazendo cena para Gabi, mas ela nunca se dobrava.

– “Tipo” que ele tem mais piercings na cara que o Pinhead!

– Claro que não! E você nunca viu Hellraiser para saber quantas agulhas ele tinha! – Nando retrucou. – Tente umbom motivo para variar, que tal?

– Você não entende? Ele tem problemas! – Gabi respondeu, balançando o pirulito.

– Ahhhh, você resolveu acreditar que ele tem problemas! Pronto, o motivo é incontestável! – Ele parecia estar debochando, mas estava muito bravo naquele instante. – Oh, Hail! Porque a Rainha da Verdade jaz diante de nós e suas palavras são as Profecias da Lei!

– Nando, pare com isso! – Gabi revirou os olhos, socou o ombro do namorado com irritabilidade e chateação por ele estar zombando dela. – Eu só estou dizendo que ele não é normal, olha para ele e me diga se é normal alguém fazer isso consigo mesmo!

– Usar roupa preta e colocar alguns piercings não fazem dele um suicida, psicopata, nem nada do tipo, Gabi!

– Eu não disse isso, não coloque palavras na minha boca!

– Você não disse, mas pensou!

– Bem, eu pensei, claro, todo mundo na escola pensa! Por que eu não posso pensar? – ela enfiou o pirulito na boca e estalou o dedo bem perto dos olhos de Nando. – Qual o seu problema?

– Gente, peraí, escutem só vocês brigando no meio do corredor por causa do visual de um garoto da classe! – Julia teve que jogar um pouco de pó da realidade em cima dos dois. – Ainda, que, sei lá, se a Gabi tivesse se beijado com ele… – e Gabi fez cara de nojo só de considerar a ideia. – Vai Gabi, eu deixo você admitir que ele tem lábios maravilhosos!

– Ele quem? – a voz que soou atrás de Julia era a de Bruno. Ela ficou branca de susto e dura como uma pedra, e depois, roxa de vergonha. Não se virou para falar com ele e abaixou a cabeça. Droga, justo agora ele não podia simplesmente passar de fones de ouvido?!

– Eu. – Nando consertou rapidamente, mas com dois dedos beliscou a bochecha de Julia em um carinho que queria dizer “Rá, se ferrou!” em deboche.

– Não, não tem. – Gabi respondeu cruzando os braços e se calando com o pirulito na boca. Àquela altura já não se sabiam mais se ela falava de Nando ou de Bruno. – O que é que você quer aqui, afinal? – Perguntou com hostilidade e empinou o nariz.

Julia olhou para Gabi com olhar de reprovação, depois, virou imediatamente para Bruno, que já se afastava sem dizer nada, com o rosto sem emoção, colocando um dos fones.

– Espera! – Alcançou a manga do seu casaco.

Bruno tomou um susto com o ato, virando-se bruscamente e se afastando até quase grudar na parede do outro lado do corredor com os olhos bem abertos e assustados, o que assustou Julia também e deixou Gabi e Nando com caras de interrogação.

– Desculpe. – Ele pediu e na sequência, foi para a sala de aula, colocando os fones de ouvido e abaixando a cabeça. Mas que coisa…! Ela e essa mania de ficar segurando nele!

– Viram o que eu disse? Es-qui-si-to. – Gabi falou e seguiu, para a sala.

Nando olhou para Julia, colocou as duas mãos no bolso da calça preta do uniforme e foi na direção da classe, após um longo suspiro que significava que ele estava tentando manter a calma e a paciência com os mimos de Gabi.

Antes que Julia pudesse seguir para a classe, Arthur e Cidinha passaram abraçados, trocando carícias logo pela manhã e nem deram bom dia. Suspirou. Droga, droga e droga!

Foi para a sala e se afundou em sua cadeira, desenhando a aula inteira.

~*~

Assim que o sinal do intervalo tocou, Gabi desceu correndo na frente aborrecida com o namorado. Nando rompeu a sala apressado atrás dela. Julia ficou para trás, enrolando para guardar suas coisas, procurando ganhar tempo para o casal se entender. Nando e Gabi discutiam frequentemente, mas nunca brigavam realmente. Uma das coisas que Julia mais admirava no casal era que eles sempre davam um jeito de fazer as pazes e de chegar em uma conclusão que fosse boa para ambos. Suspirou. Será que um dia teria a sorte de ter um relacionamento daqueles com alguém?

– Ei. – Bruno parou na frente dela, cortando seus pensamentos.

Ela ergueu o olhar, mais uma vez passando pela gola, gravata, corrente… e repousou nos lábios cheios de argola. Reparou que ele tinha um objeto nas mãos, uma caixa fina e quadrada transparente com um CD dentro.

– É… para você. – Ele estendeu o objeto para ela, com suas unhas curtas e negras. – Seu aniversário.

– Pra mim? – Ela pegou a caixinha e uma eletricidade percorreu todo o seu corpo. Aimeudeus! Era um CD de músicas, um presente de aniversário! Seu coração esquentou repentinamente, com uma chama explosiva. – O-obrigada.

– Não é nada. Sério. – Ele enfiou as duas mãos no bolso da calça, nitidamente sem graça, abaixou a cabeça. – Não tive como sair para comprar um presente melhor.

– Isso é muito melhor! – Ela sorriu e examinou o objeto, estava escrito com caneta marcadora vermelha “Para alegrar seu aniversário”, com uma letra cursiva que poderia pertencer uma menina, mas que era dele. – O que posso esperar encontrar aqui?

– Boa música. – Respondeu, tirou a mão do bolso para jogar a franja para os lados. – É o que interessa.

Julia analisou essa mania de falar com poucos palavras que ele tinha, como se só quisesse dizer o necessário e não gastar saliva ou oxigênio com palavras que seriam desperdiçadas. Quando ele afastou a franja da testa ela percebeu que ele estava com um hematoma.

– Nossa, o que houve com sua testa? – Logo comentou.

– Eu… – ele pareceu precisar pensar no assunto. Certamente precisava, não esperava que alguém fosse efetivamente perguntar! – Bati a cabeça no armário. – E ajeitou a franja para cobrir a testa de novo, guardando as mãos no bolso.

– E está doendo?

– O pior já passou. – A voz de Bruno soou um pouco diferente, com uma entonação estranha.

– Não é melhor ir à enfermaria ou algo do tipo? – Julia percebeu algo diferente.

Era como se a voz dele tivesse uma potência singular, armazenando uma força capaz de mover mundos. Sentiu os pelos de seus braços e nuca se arrepiarem, uma sensação esquisita se instalou por todo o seu corpo, não era agradável, era como se uma energia estivesse atravessando seu corpo e tornando o ar mais pesado.

– Não. – Bruno comprimiu os olhos. Julia permanecera imune à sua entonação, isso era inusitado e nunca aconteceu com alguém antes. Procurou distraí-la com um novo assunto. – Lord Byron apareceu ontem?

– Na minha casa, não. E na sua?

– Ele fugiu.

– Se quiser, posso ajudar você a procurar. Pelo bairro, quero dizer.

– Certo. – Ele concordou.

– Mas acho melhor você ir até a enfermaria.

Essa não. Bruno ficou ali sem dizer nada, olhando para ela com uma expressão intrigada. Julia percebeu e respondeu o olhar do mesmo jeito, intrigada.  Ela não entendia o que estava acontecendo, mas ele sim.

– Se quiser vou com você. – Julia insistiu e ficou em pé, já se oferecendo.

– Certo. – Ele concordou, mais porque ficou sem reação do que pela vontade de ir, que não existia.

Saíram da sala e foi bem no momento em que Arthur e Cidinha estavam passando de mãos dadas. Arthur pareceu se assustar ao vê-los e imediatamente virou para Julia, parando na porta da sala D.

– Ei, Julia. – A chamou, mas nem precisava, porque Julia tinha seus dois olhos cravados em Arthur.

Cidinha, estava logo ali, com os cabelos todos para o lado esquerdo preso com uma flor de pano vermelha, o que lhe concedia um ar sensual como se ela fosse uma dançarina de tango. Julia procurou ignorá-la, não tirou os olhos de Arthur, reparando em cada movimento de sua boca, quando ele perguntou na lata:

– Por acaso vocês dois estão namorando?

Julia se assustou com a pergunta. Arregalou os olhos, travou como se fosse um pedaço de madeira imóvel, com os músculos rígidos. Como assim? Que pergunta era aquela? Viu os olhos de Arthur fixarem-se no CD que ela trazia na mão.

– Eu vi vocês juntos ontem. – Cidinha se intrometeu. De braços dados com o namorado, acariciou deslizando a mão pelo braço de Arthur até enlaçar seus dedos com os dele.

Julia reparou naquele ato e tentou não sentir inveja disso, mas ela nunca havia segurado nas mãos de ninguém daquele jeito e não conseguiu evitar pensar sobre como seria a sensação de entrelaçar seus dedos com os dedos de Arthur. Ela queria muito sentir o calor da mão dele.

– E estão saindo juntos da sala… – Cidinha continuou sua teoria, querendo insinuar algo.

– Ele bateu a cabeça, tamos indo na enfermaria. – Julia logo se explicou, um pouco aborrecida por Cidinha fazer teorias e fofocar boatos, especialmente na frente de Arthur!

– Bateu a cabeça? Como? – Cidinha perguntou curiosa, Arthur também virou para Bruno, os dois o olhando com ares de interrogatório.

Bruno demorou um pouco para responder, mas Cidinha e Arthur não desistiram, ficaram calados esperando.

– Não interessa. – Respondeu. Seu tom de voz soou estranho novamente, como se houvesse eletricidade capaz de fazer o ar parar de se mexer.

Apesar da grosseria contida naquela frase, Aparecida e Arthur pareceram não se importar, inclusive, foi até como se eles nem tivessem escutado a resposta, e o assunto da pancada na cabeça de Bruno desapareceu como pó pelo ar.

– Eu vi vocês juntos ontem… e estão saindo da sala. – Cidinha repetiu, exatamente do mesmo jeito anterior. Foi como repetir um filme, um erro na matrix.

– Somos vizinhos. – Bruno respondeu nada incomodado com a repetição.

– Ah, meu Deus! – Arthur levou um susto, os olhos no CD. – Hoje é seu aniversário? – e arregalou os olhos.

– Ontem. Foi ontem… – Julia ficou sem graça. Apertou o CD contra o corpo e bateu as unhas na caixa transparente, totalmente sem graça e um pouco indignada em perceber que Arthur nem sabia o dia correto.

– Puxa, feliz aniversário! – Cidinha falou animada e colocou uma mão no ombro de Julia com um sorriso no rosto, como se fossem amigas.

– É, feliz aniversário! – Arthur repetiu como um papagaio.

– Obrigada. – Julia agradeceu e foi só. Logo Arthur e Cidinha continuaram a andar pelo corredor, afastando-se. A garota ficou ali parada, observando-os, segurando o CD.

– Então… – Bruno falou lentamente, com calma, olhando com o canto de olho para Julia. – Arthur.

– O quê? – Julia piscou e virou para ele assustada.

– Arthur, você, algo no ar. – Enumerou, com a mania monossilábica.

– Não, claro que não! – Julia negou, mas ficou roxa de vergonha com as faces pegando fogo. Será que ela estava dando tão na cara assim que até mesmo ele percebeu? Isso não era bom sinal. – Enfermaria. Você. Vamos? – falou imitando-o.

– Você devia falar para ele o que sente. – Bruno sugeriu, enquanto andava pelo corredor. Julia olhou para ele com espanto, esperando uma explicação. – Posso jurar que ele estava com ciúme!

– Se você acha que aquilo era ciúme, você realmente precisa rever os seus conceitos. – Julia decretou, batendo os ombros. – Vem, vamos para a enfermaria.

– Que seja. – O assunto entre eles morreu ali.

~*~

Na enfermaria, Regina perguntou:

– Como foi que você machucou a cabeça? – Ela estava com o algodão embebecido em algum remédio fedido e cheio de álcool.

Julia piscou confusa, olhando de novo para aquele bizarro “erro na matrix”. Era a segunda vez que aquela enfermeira gorducha e ruiva, cheia de batom vermelho e rugas no rosto perguntava a mesma coisa! Exatamente como aconteceu com Cidinha e Arthur!

Da primeira vez, Bruno respondeu “Desmaiei e bati a cabeça na pia”, ignorando o fato de que, momentos atrás ele havia dito para Julia que fora uma batida no armário. A enfermeira, muito preocupada, queria saber se podia ligar para os pais dele e se deveria avisar a coordenadora. Diante da chuva de perguntas, Bruno simplesmente disse “Não está doendo mais”, com aquele tom de voz que fazia os pêlos de Julia eletrificarem-se. E pronto, era como se a enfermeira tivesse esquecido de que ele havia respondido e, acima de tudo, mentido ao fazer isso.

– Sou atrapalhado.

– Bom, vamos tomar mais cuidado, certo, querido?

– Certo.

Julia ficou embasbacada e perplexa. Teve certeza de que havia algo de anormal no ar, porque percebeu que o “erro na matrix” acontecia sempre que Bruno falava daquele jeito, era quase como mágica. Talvez fosse mágica, se é que era possível haver mágica.

Resolveu por ficar calada, fingindo que não notou nada diferente, que o que acontecia era normal. Considerou seriamente, e pela primeira vez, a possibilidade de que os boatos que rolavam na escola pudessem ser verdade. E se Bruno tivesse mesmo um pacto com Satã?

Logo no segundo seguinte, porém, Julia desconsiderou a ideia e se sentiu ridícula por pensar algo daquele tipo… Quer dizer, convenhamos, ele tinha mesmo um visual sombrio que impressionava, mas daí a ser satanista ou a versão adolescente do Neo… Julia pensou que talvez devesse maneirar um pouco nos livros de fantasia, filmes de terror e especialmente em jogar tanto RPG. Estava começando a imaginar coisas! Balançou a cabeça, para afastar os pensamentos que considerou insanidades.

– Pronto. – Regina terminou o curativo pregando um Band-Aid na testa de Bruno e colocou as duas mãos na cintura por cima do uniforme branco. Ele ficou em pé. – Quando chegar em casa, coloque um pouco de gelo.

– Certo. – Ele olhou para Julia, que parecia muito pensativa, certamente incomodada com alguma coisa, mas ele já tinha percebido que ela era imune ao encanto que ele estava lançando. – O que foi?

– Estava pensando que preciso parar de jogar tanto RPG! – Confessou. – Ando sonhando acordada!

– Hm. – Foi tudo o que ele fez.

Fizera dois testes com Julia para ver se ela se manifestava sobre o assunto, se fazia alguma pergunta sobre o que estava acontecendo de estranho. Só por isso ele usou o encanto com a enfermeira na frente da garota, mas Julia não disse nada, certamente adotando uma postura cética. Era melhor encerrar o assunto por ali.

– Vamos? Ainda quero tomar um suco antes de voltar para sala. – Julia abriu um sorriso, para simbolizar que estava tudo bem. – Eu deixo você pagar como agradecimento.

– Agradecimento ao quê? – Bruno perguntou enquanto eles saiam da enfermaria. Pisaram no pátio e logo se misturaram à multidão de alunos.

– Porque você tem medo de agulha e eu vim segurar sua mão. – Ele virou o rosto em sua direção, sem entender, com uma expressão esquisita. – É isso que você vai dizer se alguém perguntar.

– Se alguém perguntar. – revirou os olhos. Meninas e suas esquisitices.

– Acredite, eu sei que a Gabi vai perguntar… e não quero que…

– E você não quer que ela fique imaginando coisas como ficou o Arthur. – ele concluiu. Julia corou-se de vergonha. – Posso fazer isso por você… embora haja uma grande falha na sua teoria…

– E qual é?

– Eu tenho piercings demais para ter medo de agulhas, não acha?

Julia ficou sem resposta, claro, era uma ideia muito idiota.

– Não se preocupe… – Bruno falou diante do silêncio dela, a voz tinha um rastro de ternura que a confortou. – Eu dou um jeito.

E foi tudo. Ele colocou os fones de ouvido, afastando-se dela.

Julia esperou ele se perder na multidão e depois, andou até o local em que sempre ficava com seus amigos. Tinha um banco de cimento onde ficava uma turma de garotas coloridas conversando de música, seus ídolos e trocando papel de carta que eram do primeiro colegial, cada uma com uma cor de calça diferente, mas com visuais parecidos.

Nando e Gabi estavam encostados na parede, conversando um com o outro. Pelo visto haviam feito as pazes. Julia se aproximou e Gabi tirou o pirulito de coração da boca, virando para ela com um espanto:

– Jujuba, onde é que você estava?

– Na classe, dando espaço pro meu casal favorito se entender. – Julia falou, omitindo a parte da enfermaria e torcendo para nenhum deles perguntar, porque com certeza Cidinha já havia espalhado a fofoca. – Se entenderam, não é?

– A Gabi vai pedir desculpa para o Bruno depois. – Nando falou.

– E o Nando vai me levar no cinema, hoje.

– Ah, que bom! – Julia sorriu feliz que os dois tinham encontrado um acordo.

– Peraí, o que é isso? – Gabi arregalou os olhos quando viu o CD que Julia carregava. Em um ímpeto, puxou o objeto analisando-o como se fosse uma engenhoca alienígena. – Quem te deu isso? – e diante do silêncio de Julia, sacou. – O Pinhead te deu isso? – e virou para Nando, aterrorizada. – Veja só! Aposto que ele já deu uma de cyber stalker na página de Facebook dela!

– Para com isso, Gabi. – Nando viu o acordo de trégua ir para baixo do ralo depois desse comentário.

– Não foi nada disso, Gabi! Como você é cismada! – Julia pegou de volta o CD. Arrependeu-se por não ter guardado antes de sair da classe, tudo seria tão mais fácil se ela simplesmente tivesse colocado dentro da mochila. – Eu falei para ele ontem que era meu aniversário, ele só tentou ser… gentil.

– É, Gabi! Você nem deu presente pra Julia! – Nando a cutucou com um dedo na ponta do nariz da namorada.

– E nem você! – Gabi fez a mesma coisa, só que com o pirulito, melecando o nariz dele.

– E nem o Arthur… – Julia acrescentou chateada. Gabi e Nando olharam para ela com piedade. – Ele nem lembrou que era meu aniversário.

– Vivo dizendo que ele é um babaca e você nunca me escuta. – Nando sentenciou, mas seus olhos denunciavam preocupação. Era como se ele estivesse assumindo um papel de irmão mais velho que dizia “se ele fizer isso de novo, vou bater nele!”.

– Ai, Jujuba, não fica assim… – Gabi foi socorrê-la, abraçando-a. Depois soltou a amiga e voltou a se encostar na parede, cruzou os braços aborrecida. – O problema do Arthur é a Cidinha, ele nunca esqueceu do seu aniversário antes!

– Ah, é… e ela é bem fofoqueira também. Falou para o Arthur que me viu com o Bruno ontem, ele chegou até a me perguntar se eu estava namorando. – Julia contou, revirando os olhos. Detestava Cidinha com todas as suas forças.

– Ai, quem ela pensa que é! Aposto que ela só disse isso para afastar ele de você. – Gabi decretou, enfiando o pirulito na boca e mordendo, demonstrando toda sua irritação. – Que vaca!

– Você devia pensar nisso… – Nando falou e as duas garotas olharam para ele curiosa. – Digo, namorar o Bruno.

– Tá doido, Nando? – Gabi deu um tapa nele.

– Ai, Gabi!

– O cara é um total freak!

– Lá vamos nós de novo… – Nando perdeu a paciência. Virou para Julia. – Você acha? Acha que ele é um freak?

– Eu? – Julia ficou azul. E agora o que ia dizer? Normal, com certeza ele não era com aqueles “erros na matrix”, o visual chamativo e os piercings… havia sim alguma coisa em Bruno que fazia todo mundo olhar para ele como se ele fosse um imã para olhos, mas também havia o fato de que ele era apenas um garoto como todos os outros! Ele era, inclusive, tímido, como ela havia reparado. – Ele é excêntrico, só isso.

– Excêntrico é eufemismo para freak. – Gabi decretou como se fosse lei.

– Cara, na boa, vocês duas estão achando que são quem? Como podem julgar uma pessoa assim só pela aparência como fazem esses mauricinhos da escola? – Nando se ofendeu como se o que elas tivessem dito fosse diretamente para ele. – Vocês são tão hipócritas!

– Não vem, não, Nando! – Gabi irritou-se com o namorado, uma coisa que ela fazia era defender com unhas e dentes sua opinião sempre que tinha uma. – Não é hipocrisia nenhuma evitar o filho de Satã, todo mundo na escola sabe o que ele fez com o Juninho!

– Isso é boato! – Nando revirou os olhos. – Bo-a-to!

– Que Juninho? – Julia não conhecia aquele boato.

– A Carlinha da turma C que falou. – Gabi contou, sem explicar a história. Julia fez uma careta curiosa, que demandava maiores informações. – O Bruno era da sala C ano passado, por isso a gente mal lembra dele… e o Juninho…

– O Juninho era um babaca que lutava Judô e vivia enchendo o saco de todo mundo. – Nando explicou do começo. – Ele era mais forte e mais velho… ele era repetente, sabe? Bom enfim… ninguém gostava muito do Juninho e ele sempre escolhia alguém para encher o saco, as vezes até batia nos moleques. Daí um dia ele sofreu um acidente de carro e ficou tetraplégico. Depois que isso aconteceu, o colégio ficou em paz por um bom tempo, sem brigas…

– Eu não me lembro disso, não! – Julia respondeu com sinceridade, mas ela nunca reparou muito na vida alheia mesmo. – E o que isso tem a ver com a história do Bruno ser filho de Satã?

– Advinha só quem foi a última pessoa a apanhar do Juninho? – Gabi sugeriu uma hipótese. A resposta estava óbvia, mas Julia não queria pensar que fosse isso. – O Pinhead.

– Ah, que isso, Gabi, é boato…! Foi um acidente! Até eu já tinha apanhado do Juninho, vai dizer que eu amaldiçoei ele também?

– É diferente, Nando!

– É diferente porque você está implicando e não consegue parar de implicar! Dá uma chance pro cara.

– É, Gabi, pelo amor de Deus, né… tá parecendo uma maluca daquelas que fica dizendo que Bin Laden não morreu e que isso foi um golpe de estado dos Estados Unidos. – Julia suspirou. Gabi as vezes exagerava!

– Bin Laden não morreu! – ela se defendeu, mas depois, como se percebesse que estava mesmo exagerando, falou. – Tá bem, eu vou dar uma chance para ele. – e com o dedo, fez o número “1”, para enfatizar. – Mas se ele ficar com esquisitices, na boa, não quero ele perto… vai ser um queima-filme!

– E de qualquer forma, quem foi que disse que ele quer ficar perto? – Nando cruzous os braços e lançou um olhar misterioso. – Ele tem a turma dele.

Fazia mais sentido até que Bruno não quisesse. Julia não evitou e acabou olhando para o outro lado do pátio, onde podia ver Bruno sentado no chão, com seus fones de ouvido e o olhar em lugar nenhum. Foi então que percebeu que realmente, Bruno tinha sua turma: os góticos do primeiro e terceiro ano. Não eram muitos, mas aquelas cinco pessoas que mais pareciam urubus, estavam bem ali ao lado dele. Todos usavam o uniforme escolar, mas de alguma forma pareciam bem mais estranhos. Alguns raspavam as sobrancelhas e as duas meninas tinham cabelos coloridos artificialmente com a franja em V, maquiagem branca no rosto e batom preto. Uma delas, de cabelo roxo e um corset também roxo por cima da camisa da escola, dividia o fone de ouvido com Bruno, ouvindo música junto com ele. Talvez aquela fosse a Trinity, pensou.

~*~

Quando se abaixou para tirar o cadeado da corrente que prendia a roda da bicicleta, pelo zíper do bolso da frente a agenda vermelha caiu no chão, aberta em uma página, com a capa virada para cima. Bruno estava de fones, não escutou quando aconteceu.

Julia pegou a agenda. Era pequena, como um daqueles livros em miniatura do tamanho da palma da mão. A capa era dura e fosca de um vermelho escuro e intenso como o sangue. Tinha uma fita de cetim para marcar páginas e na ponta dela, estava preso um frasco bem pequenino de vidro com a tampa de rolha, que continha uma pedra vermelha lapidada em forma de gota. As páginas eram amareladas, como se a agenda fosse muito velha, não havia linhas; parecia ter sido aberta de forma aleatória ao cair, mas Julia leu a pequena anotação.

Com a letra cursiva e perfeita de Bruno, em tinta vermelha, se lia:

“Gisela pegou tudo aquilo

que lhe era de valor e saiu.

Nunca mais voltou, livre enfim.”

Que bizarro.

E os dedos de Bruno tocaram os seus, quando ele fechou o pequeno livro e retirou da mão dela.

– É falta de educação ler coisas pessoais sem permissão. – ele falou com os olhos em cima dela, de um frio quase antártico.

Ele guardou o livro dentro do zíper e fechou. Tudo o que Julia viu além daquela anotação foi a contracapa, que dizia “Sebo da Esquina” e tinha um endereço, que ela não conseguiu ler porque ele guardou livro rapidamente.

– Desculpe. – Foi a única coisa que conseguiu balbuciar, totalmente envergonhada. Nunca havia xeretado nada de ninguém, se sentiu horrível. – Caiu no chão e eu fui pegar e…

– Vamos indo? – ele já estava em cima da bicicleta. – O livro praticamente se jogou aos seus pés, não deu para evitar. – narrou, e ela não sabia se ele estava sendo irônico ou falando de forma gentil, para amenizar a culpa.

– Desculpe. – ainda sem graça, ela tirou a mochila e entregou para ele. Sentou-se no cano da bicicleta. Ele estendeu o fone de ouvido para ela, que colocou e deixou um sorriso escapar. – O que é?

– Sopor Aeternus & the Ensemble of Shadows. – nomeou a banda sombria e pedalou.

Viajaram calados, enquanto a música intensa e melancólica, quase como uma poesia musical de um ode à tristeza, soava competindo com o barulho do trânsito da rua.

Foi só quando chegaram na porta da casa de Julia, que ela arriscou falar:

– Ainda está de castigo?

– É.

– Até quando? – quis saber curiosa. Bruno lhe devolveu a mochila.

– Mais alguns dias. – ele não quis dar detalhes. – Escute o CD.

– Vou escutar, obrigada! – Julia sorriu e acenou um tchau.

– Até mais.

A garota voltou-se para a porta da sua casa, pegando a chave de sua mochila. Colocou a chave na fechadura e entrou, trancando a porta em seguida. Subiu as escadas e pulou algumas caixas que estavam no corredor de cima, entrando em seu quarto.

– Miau! – Lord Byron estava lá, deitado em sua cama. O vento balançava a cortina branca do seu quarto, entrando pela janela que ela esqueceu aberta.

– Ai, ai ai… te levo para o seu dono depois, ok? Agora vou tomar banho. – Falou para o gatinho que se ergueu para roçar os bigodes em sua mão. Ela acariciou o seu pêlo negro e Lord Byron ronronou. Depois, ela andou até o rádio e colocou o CD para tocar. Afroxou a gravata e entrou no banheiro, para tomar banho.

Quando saiu, enrolada na toalha, Lord Byron não estava mais lá.

~*~

Em seu quarto, Bruno abriu a sua bolsa de carteiro e pegou de lá o livrinho vermelho que outrora caíra aos pés de Julia, percorrendo com os dedos sua capa áspera e vermelha. Aproximou o livro dos lábios, apertando contra os piercings e fechou os olhos sentando-se em sua cama.

Parecia um ato despretencioso do destino que o livro caísse de sua bola aos pés de Julia. Qualquer outra pessoa em sua situação, faria o mesmo: pegaria o livro, olharia o seu conteúdo e procuraria o dono para devolver. Foi exatamente isso o que Julia fez, não foi? Mas, como ele já sabia, aquele livro não era despretencioso e nem aquele momento, algo do acaso. Era uma escolha. O Jinn estava mudando de dono como ela avisou que mudaria caso ele deixasse de usar… Só que aquele Jinn não tinha bondade alguma para oferecer.

Durante meses Bruno carregou aquele livro na bolsa com o zíper aberto somente esperando pelo momento em que ele caísse de lá e procurasse por outra pessoa! Qualquer um que soubesse do que aquele livro era capaz, iria querer o mesmo.

No entanto, ele não queria que aquele livro fosse parar nas mãos de Julia! Ela parecia uma garota legal, dessas que tem uma vida perfeita e que não pensa nada ruim ou cruel acerca de ninguém. Aparentemente, estava enganado sobre ela, porque o livro a escolheu… e iria amaldiçoá-la tão quanto o amaldiçoou. Um Jinn como aquele não escolhia pessoas boas, porque não era um espírito bom.

A menos que ele impedisse, talvez?

Ficou em pé, abriu a gaveta do seu criado mudo e jogou o livro lá dentro. Girou a chave da gaveta três vezes e a tirou da tranca. Andou até a janela e levantou o vidro. Lord Byron pulou para dentro do seu quarto pela janela, roçando os pelos negros em seu braço.

– Miaaaaaaaau! – choramingou.  Caiu no chão de carpete cinza e subiu na cama.

– Você está certo, qualquer um pode achar essa chave se eu jogá-la daqui. – ele falou com o gato, como se Lord Byron pudesse entender. Bruno andou até o banheiro do seu quarto e atirou a chave dentro da privada. Deu descarga, enquanto olhava a chave prateada desaparecer com a água.

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Capítulo 03 - Passados

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Capítulo 04 - Sexta-feira 13

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Capítulo 05 - Vexame

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Capítulo 06 - O Desejo

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Capítulo 07 - Ação e Reação

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Capítulo 08 - Oportunidades

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Capítulo 09 - Decisões Erradas

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Capítulo 10 - Festa estranha (gente esquisita)

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Capítulo 11 - Comemorações (in)felizes

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Capítulo 12 - Só depois dos 20 anos!

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Capítulo 13 - Proibido é melhor

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Capítulo 15 - Amargo arrependimento

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Capítulo 14 - Sonho ou pesadelo

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Capítulo 16 - A noite que tudo mudou

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Capítulo 17 - Passos trôpegos

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Capítulo 18 - O princípio da Inércia

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Capítulo 19 - O Direito de Reação

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Capítulo 20 - Francamente!

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Capítulo 21 - Espiral Decadente

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Capítulo 22 - Visitas indesejadas

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Capítulo 23 - Recomeço

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